Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Sobre Livros e Cidades - A Página Manuscrita

UMA SOCIEDADE ANIMADA PELA PALAVRA, PELA ESCRITA E PELO COMPASSO


Tal perspectiva abre um novo questionamento, este de ordem estética, acerca da relação entre a escrita e a ordem urbana que se inaugura no "outono da Idade Média".


Em livro publicado na década de 1960, um grupo de especialistas se propõe a refletir sobre as aproximações entre Arte e Escrita. De modo particular, sobre as múltiplas interseções entre o processo de elaboração do pensamento e suas formas de representação gráfica. Um estudo em particular, apresentado por Robert Marichal, chama-nos atenção, tanto pela ousadia, quanto pela erudição do autor, ao destacar das páginas da Súmula de São Tomás de Aquino as relações entre o pensamento escolástico e a arquitetura gótica [ver L´Écriture et la psychologie des peuples. Paris: Armand Colin, 1967].

Robert Marichal situa os componentes gráficos que demarcam os múltiplos desenvolvimentos do texto: "estamos diante do final do artigo 1 da Questão 22, a qual trata da Providência, o artigo 2 se inicia na linha 28 da coluna 1 por um grande A em azul - o mesmo do artigo 3 será em vermelho - seguindo a fórmula tradcional: Ad secundum sic proceditur: videtur quod non omnia sint subjecta divine providentie, onde se apresenta um primeiro argumento em favor desta opinião, seguindo-se a cada enunciado pela f'ómula Preterea abreviada ... Na última linha da coluna vem o Sed contra ... Enfim, a partir da linha 33 são apresentadas as refutações dos cinco argumentos contrários expostos sob os Preterea da coluna 1, anunciados por ad primum ergo dicendum, ad secundum etc.". Importa observar que a estrutura argumentativa define ou é definida por uma ordem gráfica que organiza as ideias no espaço. Robert Marichal, "Les manuscrits universitaires". In: Mise en Page et Mise en Texte du Livre Manuscrit. Sous la Direction de H.-J. Martin et Jean Vezin. Paris: Cercle de la Librairie; Promodis, 1990. O autor analisa uma página do manuscrito de São Thomás de Aquino, Somme Théologique, Ia. Pars, 1268-1306. (B.N., ms. lat. 15783, fol. 40 vo.)
De modo análogo, podemos pensar que se a escrita corresponde à organização espacial do pensamento, parece compreensível que a leitura de um texto nos convide a refletir sobre a “razão gráfica”, para utilizar um termo de Jack Goody, que preside a disposição das palavras em uma dada superfície. Pois, assim como as cidades permitem múltiplas leituras a partir de suas construções e das formas como elas se dispõem no espaço, também o texto inscrito em uma página alude a outras formas de leitura que perpassam o campo estritamente semântico. Tais aproximações entre arte tipográfica e arquitetura se realizam, aliás, em vários planos. No que toca à visualidade da página, podemos pensar como o designer John Ryder, para quem o espaço revela tanto da mensagem [do texto] quanto os espaços da cidade são reveladores de sua arquitetura [apud. Richard Hendel, O design do livro. São Paulo: Ateliê Ed., 2006]. Outrossim, se nossa atenção se volta para os diferentes processos que resultam em uma página impressa ou de uma obra arquitetural, veremos que ambos não podem prescindir de um projeto. É o que vemos na Renascença italiana, quando emergem as “cidades ideais”. Segundo G. C. Argan reside nesta divisão de tarefas, a saber, a de pensar a cidade e a de torná-la exeqüível, o aparecimento de duas formas de trabalho: o reflexivo, as chamadas “artes liberais”, realizadas pelos intelectuais; e o manual, as “artes manuais”, realizadas por aqueles que as executam, os executivos.
Também fruto dos séculos de mutações que marcam o alvorecer da Época Moderna, a arte de impressão por meio de tipos móveis, ao se difundir no Velho Mundo a partir de meados do século XV, pressupôs nova forma de planejamento da escrita sobre a página. Não que os antigos escribas desconhecessem essa conduta. Os livros manuscritos que sobreviveram às intempéries do tempo testemunham os esforços por eles despendidos no sentido de organizar as palavras na superfície dos pergaminhos. Esforços que atentavam para os princípios estéticos e de legibilidade do texto, os quais se cristalizam na tradição tipográfica. Porém, a invenção dos tipos móveis exigia algo mais. Exigia o trato com as palavras por meio de instrumentos mecânicos. Talvez, nesse ponto, devamos reivindicar para os livros caracteres que os distinguem de outras manifestações artísticas, dentre elas a arquitetura, nesse contexto de nascimento das “artes liberais” e das “artes mecânicas” às quais alude G. C. Argan. Pois, antes de ter promovido a divisão do trabalho, a arte tipográfica promoveu, nos seus primórdios, a concentração de diferentes competências nas mãos de um só artífice.
Neste exemplo, o poema de Dante ocupa o centro da página. O comentário se situa nas colunas marginais e a ligação da leitura entre as duas partes é organizada a partir de um jogo de cores. Mantém-se, assim, um princípio hierárquico, segundo o qual o lugar de honra na página é guardado para o texto principal. A Divina Comédia, de Dante Alighieri, com o comentário de Benvenuto da Imola. BnF, Manuscritos Ocidentais, italiano 78, fos 53 Vo-54.
[Estudo de Jacques Demarcq, "L'Espace de la page, entre vide et plein". In: L'Aventure des Écritures. La Page. Sous la Direction de Anne Zali. Paris: BnF, 2000]

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