Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Monteiro Lobato, O Colocador de Pronomes


Monteiro Lobato e a máquina de livros

Sobre as condições editoriais em São Paulo, nos anos de 1920

Para Marisa Lajolo, autora intelectual deste artigo, escrito em sala de aula nos distantes 2001


Da Ficção

Esta é a história de Aldrovando Cantagalo, “O colocador de pronomes”. Na verdade, pode-se dizer que a saga pronominal se inicia muito tempo antes... após uma experiência malograda do pai, cujo destino fora traçado diante de um gravíssimo, senão irreparável erro de colocação de pronomes. Ocorreu que esta falha, tão comum entre os praticantes da língua pátria, foi motivo de um grande mal entendido, dando oportunidade a certo velhaco, coronel respeitado de uma pequena cidade, que bem soube tirar proveito da fraqueza do outro. Mas contemos em poucas linhas o destino incerto deste personagem malogrado.
O pai de Aldrovando Cantagalo cortejava a bela filha do coronel. Um dia, encheu-se de coragem e lhe escreveu um singelo bilhete: “Anjo adorado! Amo-lhe”. A confissão, no entanto, foi parar na mão do pai, que tratou logo de tirar satisfações com o rapaz. A atitude exigia, pois, reparos. E a saída para evitar maiores ofensas àquela família era casar logo a filha, ficando tudo no dito pelo não dito. O que este pobre homem não sabia era que o velhaco ao invés de lhe entregar a sua amada, deu-lhe a outra, mais velha e menos bela. Afinal, “Amo-lhe”, assim, escrito a uma, era na verdade confissão de amor à outra. Para evitar uma terceira pessoa que viria para lhe desgraçar a vida, o pronome salvador seria o “te”, mas não foi o caso. Houve o casamento e deste consórcio nasceu Aldrovando Cantagalo, nosso personagem em questão.A sorte do filho não seria menor. Tendo o pai como vítima da gramática, tornou-se logo seu escravo. O compadecimento foi tanto que Aldrovando Cantagalo não fez outra coisa senão honrar a língua pátria destacando os seus grandes mestres e estudando, com dedicação admirável, as suas minúcias gramaticais. Homem sábio, devorava gramáticas e dicionários. Nutria verdadeira adoração por Frei Luís do Souza. Aldrovando era, com efeito, um sábio. Mas não suficientemente sabido...

A sofreguidão se agudiza no fim da vida. É neste momento que Aldrovando Cantagalo tenta desesperadamente impor as normas cultas da língua portuguesa na fala corrente. Luta. Esperneia. Esbraveja. Tudo em vão. Reúne, enfim, suas últimas forças para a batalha derradeira: decide escrever sua própria gramática. Eis que leva a termo a obra monumental: três tomos de 500 páginas cada um. No primeiro tomo, voltado para o estudo Do pronome se, o mais recente manipulador da língua pátria faz uma justa dedicatória ao grande mestre:

À memória daquele que me sabe as dores, Frei Luís de Souza.
Neste ponto se inicia e se conclui a história de duas gerações malogradas. Uma vez concluída a impressão da obra, Aldrovando Cantagalo tem em mãos os primeiros códices, fruto de seu trabalho. E como a natureza fez os homens perversos, eis que, por alguma razão desconhecida, talvez puro capricho ou distração, os tipógrafos invertem a colocação do pronome “me” contido na dedicatória. O resultado é este:
daquele que sabe-me as dores.
Logo na folha de rosto, aquela inversão despropositada lhe atingira diretamente a alma. Após ler copiosas vezes o que era feito de todos os seus esforços, Aldrovando Cantagalo não suportou o golpe e morreu. Com ele, morria também o sonho de ser autor. Autor de uma única obra. Obra monumental, que vinha livrar a língua portuguesa de todos os seus vícios.E foi assim que este homem que tanto sabia, não soube ser suficientemente sábio para compreender as leis do mundo dos livros. Dos códigos que perpassam as relações existentes entre Autor, Editor e Obra.

A fantástica fábrica de livros

A leitura do conto de Monteiro Lobato, escrito em 1924, sugere uma série de questões sobre este complexo sistema que envolve a produção literária e seus principais agentes. Interessa-nos, especificamente, apreender da história os diferentes circuitos de circulação e difusão do livro, cuja incompreensão culminou no total fracasso do personagem. A tragédia de Aldrovando Cantalo será lida como uma metáfora do autor malogrado dentro do sistema literário. Aldrovando Cantagalo é um escritor isolado, portanto, autor sem nunca o ter sido no amplo sentido que a palavra confere ao criador de uma determinada obra.
Mas, afinal, autor não é aquele que tem sua obra publicada?
Nesse caso, não tinha nosso personagem razão para se queixar da má sorte. Publicara, enfim, sua gramática.
Não bastava a ter editado. 

Uma obra precisa ser lida e, para tanto, ela precisa entrar no circuito dos livros. E se os caminhos forem ainda mais tortuosos, dos amigos, das instituições letradas, dos salões, enfim, de um circuito mais ou menos marginal que possibilite pelo menos a difusão das idéias contidas nos livros. E este não fora o caso.
O primeiro volume, no qual o autor inscrevera a dedicatória que daria, por fim, cabo à sua vida, era todo ele voltado ao estudo Do pronome se. Ora, esta história da colocação pronominal era, na verdade, tema coberto de artificialismo. Qual regra para colocação de pronomes, quando nossa própria regra vinha de uma vergonhosa intervenção real sobre o uso da língua. O assunto merecera, no século anterior, considerações brilhantes por parte de nossos autores, dentre eles o próprio Machado de Assis.
Oswald de Andrade, por sua vez, resolvera a questão em seu poema “Me dê um cigarro”. Nada de regras e purismos. Aldrovando Cantagalo se encontrava na contracorrente dos “ismos” da época. Portanto, muito aquém das possibilidades de se inserir no que se entendia como vida intelectual da cidade de São Paulo.
Era natural que não encontrasse um só editor que se dispusesse a investir em tal projeto. E nesta cadeia lógica que compreende todo o processo de produção de um livro, eis aqui um outro agente de notável importância: o Editor. A corrida do autor em direção a uma editora que aceitasse publicar a obra foi, não sem razão, comparada pelo narrador como a uma verdadeira Via Sacra:

E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade. 
Má gente, nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo:
‘Não é vendável’; ou: ‘Por que não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?’
Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.”
Tantas adversidades só poderiam mesmo ser decididas com uma bela mesóclise:
___ Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sem pelejar com todas as armas e irei até o fim. Bofé!.
Note-se que as palavras por nós destacadas são deveras esclarecedoras para compreendermos as formas pelas quais eram mediadas as relações entre Autor, Livro e Público. 
Aqui, o discurso se transforma totalmente. Não se tratava mais de um grande projeto do autor. Tampouco estava em questão todos os seus esforços para a conclusão de anos de pesquisa e estudos. Nada disso. O que está em foco, neste momento, é a mercadoria que o autor tenta, exaustivamente, colocar no mercado. 
E é neste momento que Aldrovando Cantagalo tem à sua frente uma inesperada revelação: o livro não é vendável. Talvez fosse melhor tentar um livro infantil que fosse aprovado – diga-se aqui financiado – pelo governo. Desvendada a dinâmica deste cartel, a solução para enfrentá-lo era financiar-se a si próprio. Ou seja, custear a impressão.
Nesta passagem, o narrador põe em cena os principais mecanismos ordenadores do livro. Quem é o editor, senão o agente responsável pela seleção do repertório de leitura que deve circular no mercado? E é o editor, não outro, o promotor desta transformação que se opera sobre o livro: de objeto à priori dedicado à difusão de ideias, ou seja, formador de cultura, torna-se mercadoria portadora de valor de uso e de valor de troca. Outrossim, a denúncia deste cartel existente na cidade faz parte de uma longa trajetória de profissionalização e organização no mercado do livro.
De fato, não é possível compreender o aparecimento do livreiro, do livreiro-editor e do próprio editor, bem como toda a dinâmica de produção do livro, sem que se estabeleçam suas relações com as formas pelas quais estas atividades se articulam com a cultura local. Tem sentido, por exemplo, afirmar que o comércio de livros no período colonial e monárquico – pelo menos até aos anos de 1840-50 – não dependia de livreiros. Pois não só a procura é muito restrita, como a atividade comercial não era especializada[1]

O mesmo se aplica aos editores. A edição do livro é uma atividade muito recente no Brasil, se a tomarmos de acordo com os cânones estabelecidos pelos editores europeus: o autor vende os direitos à casa editorial ou recebe um percentual sobre o preço de capa. Ora, os grandes movimentadores da imprensa editorial na primeira fase de constituição de uma vida literária em São Paulo são os tipógrafos e os próprios autores! Daí a dificuldade de edição e publicação entre os autores românticos ligados à Faculdade de Direito ser compensada pela publicação de seus textos em revistas e em jornais.
As condições se transformam paulatinamente a partir dos anos de 1890. Aumentam as instituições de ensino elementar. Criam-se dois cursos superiores de grande relevo, o de Medicina e o de Engenharia. Crescem em número as bibliotecas e os institutos de pesquisa. Em termos simbólicos, é quando São Paulo deixa de ser um “burgo de estudantes” e passa a receber o epíteto de “metrópole do café”. Nesse ponto, a relação entre a cultura material e, por assim dizer, a cultura espiritual, torna-se ambivalente, pois se é correto afirmar que o campo intelectual ganha novos espaços, perdendo, dessa forma, seu caráter fundamentalmente monocêntrico, também os novos haveres do mercado sugerem uma vida intelectual mais compromissada e menos diletante. Ao mesmo tempo, aqueles antigos entraves para se ter acesso aos impressos existentes no Rio de Janeiro, ou mesmo de artigos estrangeiros, vão pouco a pouco desaparecendo, pois a praça comercial sofre um processo sistemático de modernização que, nesse momento, significa a abertura do Porto de Santos para o comércio internacional[2].
E quem teria saído à frente deste mercado, pelo menos na cidade de São Paulo, senão o próprio narrador? Monteiro Lobato sabia bem do que estava falando, ao descrever todas as dificuldades impostas ao escritor quando de sua tentativa no sentido de ultrapassar as barreiras impostas pelos interesses mercadológicos. Era portanto impossível vencer aquele cartel. E estamos a tratar de um fase de desenvolvimento da economia do livro na capital paulista. Aumentam em número as livrarias da cidade. O Almanak Laemmert (1903-1904) anuncia a presença de 19 casas do ramo livreiro, que se distribuíam entre vendedores de livros novos e usados, papelarias e materiais para escritório[3]. O mesmo ocorre com as tipografias. E, como reflexo de uma maior demanda do mercado livreiro, assiste-se, igualmente, ao aumento do número de editores na capital.
Monteiro Lobato será, ele mesmo, entre 1917 e 1925 o principal operador da revolução editorial assistida na Pauliceia.


Livro, esta mercadoria



Este fermento de ideias vem efetivamente engrossar o caldo cultural da cidade. Como vimos, abrem-se novas casas editoriais, tipografias e livrarias, enfim, os agentes que compõem e fecham o circuito de produção e distribuição do livro estão em pleno desenvolvimento.
Assim o conto de Monteiro Lobato põe em evidência as condições de edição do livro nos anos de 1920. A nosso ver, anunciando uma nova fase da história editorial brasileira, que é a das grandes casas editoriais, com seus poderosos articuladores da produção cultural do país. Ele próprio, Monteiro Lobato, seria o grande “fermentador” das novas idéias que resultaram em editoras modernas, cujas relações com seus autores e com o público eram mediadas pela lógica do mercado. E não seria menos iconoclasta a perspectiva do narrador ao tratar do livro como mercadoria nas suas obras de ficção. 
A primeira ideia do personagem era a de que o livro lhe traria alguma renda.Depois, veio o tempo de espera da chegada dos volumes. Aos poucos, Aldrovando Cantagalo transformava o livro em uma espécie de panacéia para todos os males. Quer dizer, para os males praticados sobre a língua pátria. Era uma grande ideia aquela de comparar a leitura da gramática a pílulas que iam paulatinamente curando para sempre do vício dos pronomes mal colocados. “A pílula do futuro” era o PRONOMINAL CANTAGALO, escrito exatamente desta forma, em maiúsculas garrafais. E “para algum caso de pronomorréia agudo, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL N. 2, onde entrava a estricnina em dose suficiente para libertar o mundo do infame desejo”. Pílula de uso fácil, efeito rápido, logo, de venda garantida.
Puro delírio?
Nada disso. Apenas uma visão, quiçá vanguardista, do livro como bem de consumo exposto a um mercado às vezes mais exigente do que o normal, mas que não depende – e aí está o segredo que Cantagalo não percebeu – apenas do esforço de seu criador.
Segundo Marisa Lajolo,
[Monteiro Lobato] inaugurou uma concepção de literatura que incluía a noção de livro como objeto sem aura: como linguagem, como texto, como mercadoria (...) O autor Lobato não se soma ao editor Lobato. Ambos são um só, e esse um pôs em prática uma concepção moderna do escrever, que incluía o leitor não só como virtualidade presente no texto, mas como território a ser conquistado, a partir da criação de mecanismo de circulação entre obra e público”[4].
No fim da história, Aldrovando Cangalo não descobre senão o total fracasso de seu projeto. Não era apenas o erro tipográfico contido na folha de rosto que lhe fustigava a alma. 
Mas é justo afirmar que toda uma série de dificuldades que iam se apresentando ao desafortunado autor, no momento mesmo em que concluía a obra, encaminhava-o para aquele desfecho trágico. A ausência de editores, os custos da edição, a demora do serviço, o erro, enfim, aquela inversão fatal de um pronome, tudo isto indicava o quanto o autor estava longe de ter domínio sobre o seu objeto de criação.
Todavia, conforme salientamos, livro é bem de consumo, mercadoria industrializada como tantas outras. E, como fermento de idéias, é igualmente bem simbólico, de modo que o seu mercado deve ser compreendido com todas as especificidades e cuidados que a matéria exige. 
O livro vale pelo material de que é feito, mas também pelo conteúdo e, o que é ainda mais interessante, por sua maior ou menor capacidade de ser absorvida pelo mercado. Esta, inclusive, é uma problemática que há muito tem sido analisada pelos historiadores e estudiosos da leitura. Aqui, vale apenas lembrar que mesmo aqueles projetos que estão longe se serem acolhidos por um vasto público, ou seja, mesmo os livros que aparentemente não passam de devaneios de autores como Aldrovando Cantagalo, estes ainda têm um destino certo. O mercado de livros mortos. Livros condenados ao esquecimento. Pois se trata de uma matéria tão especial que, ao contrário de muitas mercadorias que se degradam com o tempo, o livro fica ali, silencioso, esperando, quem sabe um dia, a sua vez.
E esta parece ter sido a mensagem última do narrador de “O contador de pronomes”. O autor se foi, é verdade, não superando o grande golpe de um projeto malogrado. O que ele não sabia, é que sua obra repousaria nas mais recônditas estantes do mercado marginal. Foi assim que, antes de sofrer o golpe fatal, ofereceu um exemplar ao carregador que lhe depositara em casa os volumes.
O personagem, por sua vez, depara-se com uma nova ordem. Ou novos princípios “que governam a ordem do discurso”[5]
A São Paulo dos anos 20 despertou nosso interesse justamente pelas suas peculiaridades: centro de ensino superior, apresenta atividade jornalística independente e uma intensa vida cultural. Como vimos, são fatores que se transformam paulatinamente em possibilidade concreta para a criação de um mercado próprio e de meios próprios de difusão. Mas, quais os princípios expostos pelo narrador? E de que maneira ele nos esclarece sobre os processos de produção e circulação dos livros?
Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação de uma grande fortuna.
A relação que o escritor estabelece com sua obra é bastante fria e distante. Nada de devaneios amadorísticos, mas a lógica pura e simples do custo e benefício. Nada mais. E o porquê do malogro fora anunciado: livro sem público não tem editor. Antes de cairmos na questão sem fim, a saber, se é o público que cria o livro ou é o livro que cria o público e qual o papel do editor neste qüiproquó, vamos ao que interessa: o personagem teve que pagar o livro para o ter editado.
O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:
_ Isto no ‘sebo’ sempre renderá cinco tostões. Já serve!... 

[1] cf. Rubens Borba de Moraes, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, 1979; Maria Beatriz Nizza da Silva, “História da leitura luso-brasileira: balanços e perspectivas”, op. cit., p. 151.

[2] Marisa M. Deaecto, “A internacionalização do mercado”. In: Comércio e vida urbana na cidade de São Paulo (1889-1914). Dissertação apresentada à Fac. de Fil. Letras e Ciências Humanas/USP, em setembro de 2000.

[3] Almanak Laemmert de São Paulo e indicador para 1903-1904. Obra estatística e de consulta..., 1904.

[4] Marisa Lajolo. “A modernidade em Monteiro Lobato”. In: Regina Zilberman (Org.). Atualidade de Monteiro Lobato, p. 42.

[5] Roger Chartier, A ordem dos livros – leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, 1999.

Nenhum comentário:

Postar um comentário