Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Gustavo Piqueira lança Lululux...

O Livro Desconstruído

"Mas as pessoas na sala de jantar..."


Desde Jorge Luís Borges as definições do livro se tornaram desnecessárias. Vazias de poesia. Faltas de senso crítico. Deve-se duvidar do intelectual que se propõe a estabelecer uma conexão honesta entre o objeto, a palavra e seus sentidos. No limite, assume-se que a questão tem apenas função retórica. Trata-se, enfim, de um falso problema. Pois todo mundo sabe o que é um livro – talvez cada um o saiba à sua maneira.
A ideia-livro – ou livro-ideia? – se tornou tão poderosa que o exercício de sua desconstrução não destitui o objeto de seu significado original. Ou de sua função original, como ocorre em muitos casos. Todos sabem que o e-book não corresponde necessariamente ao livro. Porém, considerando que sua função primordial é a leitura, ninguém tenta dissuadir as pessoas e todo o vigoroso mercado midiático de que aquilo, afinal, está longe de ser um objeto de papel dobrado. Também um livro-objeto, ou um livro de artista, ou uma escultura de livros apenas mantém sua identidade original porque contém “mil palavras” ditas ou subentendidas. Mas a unidade mínima, a sua concretude, esta, se perdeu. Restou apenas a ideia-força do livro – objeto de leitura ou de múltiplas leituras.
Assim é a arte de Gustavo Piqueira. O livro está lá, na sua concepção original. O livro sempre esteve ali, desde o momento da escrita. É bem provável que o livro seja a um só tempo o ponto de partida e o de chegada de todo o processo criativo desse grande artista. No entanto, quando se completa a volta, o que surge não tem absolutamente a mesma rigidez das dobras de papel. A ideia-livro se converte, então, em discurso, enquanto a palavra toma acento na função-livro. É um caminho tortuoso, dir-se-ia, quase uma contradição.
Em Lululux a estrutura narrativa não se enquadra no retângulo da página. Antes, um jogo de jantar (des)constrói a figura desse personagem deveras curioso, não raro vazio como um copo, mas que preenche seu tempo entre postagens na Internet, cursos e pensamentos nada profundos – o personagem é vazio, vale frisar – relatados antes de dormir. Lux Moreira se situa naquela zona desconfortável em que o luxo deve virar lixo. Pois, afinal de contas, o livro de Piqueira pode ser consumido e descartado. E se a ideia de se descartar um livro contradiz a sua natureza perene, não é menos verdade que diante de um mercado editorial tão eclético, a percepção de que muitos livros são descartáveis não deve ser descreditada. Quem lê tudo isso?
É nesse ponto que o livro-jogo-de-jantar, de Gustavo Piqueira – este novo empreendimento cultural da Casa Rex, em parceria com a Lote 42 – coloca em xeque a tensão entre conteúdo e continente. O personagem Lux Moreira é dado aos pensamentos fáceis da autoajuda, às imagens vazias da televisão, às frases feitas das redes sociais. Nada que não esteja nos livros quadrados das melhores livrarias. Mas, então, qual é o diferencial do livro do Piqueira?
Nas mãos de Piqueira o livro vira arte, artesanato, indústria.
E as palavras... o que são as palavras diante de um livro-objeto?
Artigo publicado em Revista Brasileiros, n.102, jan.2016.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Homenagem a Maria Bonomi

Livro-Concreto 

Dentre as muitas possibilidades de escrita evocamos, nesta primeira matéria do ano, o traço monumental de Maria Bonomi. Como os antigos, a escrita, aqui, insere-se na esfera pública. Nos muros da cidade. Mas, agora, trata-se do grande livro urbano destinado às massas das grandes cidades. 

FELIZ 2016!
Obra Epopeia Paulista, na Estação da Luz. Exemplo de escrita pública de Maria Bonomi

Eis que o livro surge como atitude mimética da ordem do corpo e das cidades...

Do corpo humano, tomam-se de empréstimo as partes elementares de uma anatomia complexa: cabeça, pé, frente, costas... Mas também o dorso que convida, a pele que ativa o tato e o olho que demarca o título. No fluxo aparentemente desordenado da tinta – apenas aparente, note-se, pois tudo no livro obedece a um imperativo – letras e grifos fazem escorrer palavras e pensamentos que afloram nos poros, no gesto e no diálogo que se cria neste corpo a corpo a que chamamos leitura.
O livro é uma obra de arquitetura modelar. A peça guarda entre duas capas toda a verdade do mundo. Mas também as maiores mentiras, as crenças, as decepções, as vitórias e as derrotas acumuladas e imaginadas pela humanidade. Não há, enfim, temática ou gênero literário que não caiba em sua superfície.
O livro é um gesto urbano. E de urbanidade. Desde a Renascença convencionou-se que o leitor era convidado a adentrar no livro por um grande portal, ou portada – ancestral da singela folha de rosto. E os portais eram tão eloquentes quanto a arquitetura das cidades vibrantes do velho continente.
Há no gesto tipográfico o sentido da urbanística. A mancha urbana e a mancha tipográfica se constroem a partir do mesmo confronto entre o branco e o preto. Entre o vazio e o cheio. Entre o espaço acometido pelo sulco violento do tipo e aquele que se guarda imaculado, onde a luz repousa e os olhos descansam.
E se os livros são cidades que se encerram entre duas capas, não seriam também as cidades grandes livros abertos para a escrita dos povos? Assim como os livros, as cidades se submetem ao ato da escrita. Os signos urbanos antecipam e cristalizam as leis que regem a tipografia. Ambos se dobram a uma mesma ação, filiada a uma única raiz etimológica, do latim scribĕre. Nas palavras do Houaiss, “marcar com o estilo (ponteiro ou haste de metal), traçar uma linha, assinalar, gravar, marcar com cunho, desenhar, representar em caracteres, fazer letras”... numa palavra: escrever.
Gravar, marcar com o cunho, fazer sulcos. As escritas monumentais constituem um gesto urbano e de integração social cuja herança e significados sobrevivem nas sociedades contemporâneas. Fazer sulcos na cidade, como faziam os antigos; marcar a cidade, como o faz o tipo sobre o papel; sulcar o concreto, como quem “machuca” uma matriz xilográfica; tirar da secura do concreto sua luz, dobrar-se às suas sombras e encher de cores a matéria bruta e enegrecida das grandes cidades, tudo isso constitui uma atitude urbana. Fazer da cidade um livro-concreto se torna, portanto, um gesto público. Arte pública. Maria faz tudo isso. Em suas mãos a superfície ganha volumes, sulcos, sombras, luzes e cores. Seus livros são monumentais, pois seus leitores transitam nas grandes cidades. Maria faz livros para as massas. O que Maria faz? Maria Bonomi tira da matéria o que lhe resta de inefável.