A TRADIÇÃO LIVREIRA NOS PAÍSES BAIXOS MERIDIONAIS
Os Países Baixos Meridionais constituem um verdadeiro mosaico de territórios anexados, no decurso de três gerações, pelos duques de Borgonha da casa dos Valois. Processo que se iniciou durante o reinado de Filipe II, o Audaz (v.1363-1404), sucedido pelos filhos João Sem Medo (r. 1404-1419), Filipe III, o Bom (r. 1419-1467) e pelo neto Carlos, o Temerário (r. 1467-1477), herdeiro de um “estado bourguignon” já consolidado.
A tessitura de um “território” por assim dizer tão extenso quanto diversificado impôs aos historiadores do livro, em particular àqueles dedicados aos códices manuscritos, algumas dificuldades. Pensemos, por exemplo, na acepção mesma de uma “arte do livro flamengo”, ou de uma “miniatura flamenga”, quando se sabe que a unidade do conjunto se constrói a partir da diversidade de estilos, noutros termos, a partir das diretrizes de produção e gostos já cristalizados no âmbito de uma tradição local.
Seguindo a lógica da unidade na diversidade, é possível apreender ao menos duas tendências artísticas, senão, duas escolas: o chamado estilo Rinceaux d’or [Folhagens de ouro], que remonta à tradição dos primeiros artistas; e um estilo renovador, sob influência de Rogier Van der Weiden (1400-1464), artista ligado ao senhorio de Bruxelas, e de Jan Van Eyck (1390-1441), que atuou em Bruges, este primeiro grande centro produtor de manuscritos ilustrados. Uma presença tão marcante que se convencionou classificar as ilustrações flamengas em dois grandes seguimentos: um anterior e outro pós-Van Eyck. É o que revelam os códices depositados nas grandes bibliotecas da região, em particular, a coleção dos Duques de Borgonha, cujo acervo se encontra na Biblioteca Real da Bélgica. Uma cartografia dos principais centros produtores e consumidores de códices manuscritos perfaz, em grande medida, os mesmos circuitos de produção e consumo de artigos de luxo, os quais notabilizaram as cidades dos Países Baixos. Ela revela, ainda, a existência de canais de comunicação entre diversos centros produtores, havendo, não raro, uma verdadeira divisão de trabalho na feitura de um só códice. É o caso das Chroniques de Hainaut, livro ricamente confeccionado em apenas dois anos, de 1446 a 1448, sob os auspícios de Filipe, o Bom. Envolvem-se nesse processo não apenas o mecenas, mas a figura do editor, que coordena a tradução e revisão do texto; em seguida, a do copista; e, finalmente, a do ilustrador; para não contar a do pergaminheiro, este, certamente, escolhido a dedo, dentro de uma tradição severamente resguardada por seus mestres.
Filipe, o Bom recebe diante do Conselho o livro Chroniques de Hainaut, das mãos de Simon Nockart |
Nada impedia que um aprendiz efetivasse sua formação com um mestre “estrangeiro”, com a condição de que esta aprendizagem fosse valorizada em alguma outra cidade. Naquelas localidades onde as listas de aprendizes foram conservadas, como em Tournai, estes casos são muito frequentes. Pode-se, assim, supor de origem flamenga um certo Pierre de Hulst, aprendiz de Mille Marmion, que tem acesso à formação em 1477, em seguida, que um certo Pieter Van Hulst, filho de Lauwereyn, torna-se mestre em Gand, em 1480: poder-se-ia tratar do mesmo homem. Marthe de Hulst, muito provavelmente uma parente de Pierre, teria o mesmo pedigree. Ela se forma como iluminadora profissional com Martin Herman, nascido em Antuérpia, mas que se instalou em Tournai. Uma Flemish connection – conclui o autor – se desenha nesta boa cidade da França que era Tournai.
A Virgem com seu Filho adorada por um monge cisterciense (c.1479) |
Não nos espanta, portanto, a rapidez com que as oficinas tipográficas se instalaram em toda a região, a partir de 1470-80. E o fato da Antuérpia, esta capital vibrante do “século de ouro dos Fuggers” não ter demorado a se tornar seu principal centro produtor de livros.
Estou estudando o retrato em Portugal seculos XV e XVI e gostei de encontrar o seu artigo!
ResponderExcluirparabéns
Muito obrigada!
ResponderExcluirNo momento, estou totalmente voltada para as bibliotecas do Leste!
Espero poder ajudar mais em outras oportunidades. Quando quiser divulgar encontros e pesquisas de temas afins, é só enviar o programa.