Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

DiverCidades - Ônibus e Livros


Ônibus fazem revoluções?


http://culturanoonibus.blogspot.com.br/
A questão foi apresentada por um estudante da FFLCH-USP, durante um caloroso debate no qual se discutia, entre outras coisas, o colapso do comunismo e da sociedade contemporânea. O aluno lembrava de forma provocativa e brilhante que o estopim da luta pelos direitos civis dos negros nos EUA ocorrera dentro de um ônibus, quando Rosa Parks (1913-2005) se negou a ceder seu lugar a um branco. Barak Obama estrategicamente visitou o célebre “Ônibus de Montgomery”, que se tornou um símbolo na história das lutas sociais estadunidenses.
Para os moradores da cidade de São Paulo esta questão passou a fazer sentido e esquentou sobremaneira as noites invernais do mês de junho. Os estudantes se mobilizaram. A polícia também se mobilizou, diga-se de passagem, em uma reação para lá de desproporcional em relação à força aplicada pelos manifestantes. E o governo, atônito, bem ... certamente não entendeu o radicalismo das massas diante de um aumento tarifário certamente inexpressivo, na ordem de 6,66%. Número da besta, diriam alguns. Saturação devida a excessos maiores acumulados desde a última gestão, responderiam outros.
Importa dizer que a questão – “ônibus fazem revoluções?”- evoca tempos e revoluções nos quais o objeto de discórdia entre as classes e de desconfiança entre as autoridades não eram exatamente os transportes públicos, mas os livros. O escritor francês Marie-Joseph Chénier (1764-1811), perguntara a certa altura: “Quem tem medo dos livros?”. Ao que ele mesmo respondeu, fazendo de sua pena a voz do povo: “É aos livros que devemos a Revolução!”. Crença que certamente era partilhada pelo líder revolucionário Jean-Paul Marat (1743-1793), quando lia para as multidões, na Place de la Grève, o Contrato Social de Rousseau (1712-1778). Homens de livros e de revoluções, sem dúvida, que conheceram o poder impetuoso das massas na grande Revolução que abriu as portas da era contemporânea. E de um longo século de revoluções.
Um ônibus-biblioteca na província francesa
Os livros se aproximam das massas e dos transportes públicos, de fato, apenas no avançar do século XIX. Quando a revolução industrial atinge as gráficas e o preço unitário do volume ganha apelo popular, pequenas coleções de bolso ocupam os quiosques das estações de trem e, mais tarde, passarão a ocupar coleções editoriais voltadas para um público moderno, de transeuntes e viajantes de trens e de ônibus. Na França a Collection de l’Omnibus testemunhava o caráter progressista dos transportes públicos em meados do Oitocentos, uma realidade bem diversas daqueles bondes, verdadeiras carroças coletivas puxadas por tração animal que sacolejavam nas ruas esburacadas de nossas discretas cidades. O conteúdo, entretanto, não passava de narrativas edulcoradas, bem ao sabor do leitor despreocupado, não menos sacolejante, que transitava pelas ruas da “cidade luz”.
Um ônibus-biblioteca na capital paulista
Os ônibus-bibliotecas circularam em São Paulo nos anos de 1930, sob a ação do Departamento de Cultura, instituição movida por alguns visionários como Mario de Andrade, seu primeiro diretor, em 1935. De sua gestão nasceram, a favor dos livros e da formação cultural para todos, os Parques Infantis e a Biblioteca Municipal, que hoje leva seu nome. A prática dos ônibus-bibliotecas não se restringiu a esta experiência passadista, na São Paulo da garoa – também este um epíteto do passado, na grande metrópole onde não há mais a garoa fina das noites de inverno. Pelo contrário, os ônibus vem e vão ao calor dos tempos, foram retomados na cidade durante a gestão da Prefeita Erundina, que teve à frente da Secretaria da Educação a Filósofa Marilena Chauí. E continuou, célere, mas sem a mesma regularidade, nas ruas congestionadas da metrópole. Hoje eles são anunciados no site da Secretaria Municipal da Cultura, com o fim de prover as áreas carentes de bibliotecas e com funcionamento regular, de 3a. a domingo, das 10h às 16h. Parece certo que nas cidades interioranas ele funciona com igual entusiasmo.
Entre uma experiência de natureza editorial e mercadológica, a outra, movida pelo principal universal de democratização da leitura, algumas lições podem ser colocadas em prática.
Da crise dos transportes que se torna mote de uma revolução urbana, poderíamos ver nascer uma nova “Coleção Leituras de Ônibus”. É claro que no lugar dos romances açucarados, em desuso, imagina-se, após a revolução sexual dos anos de 1960, poder-se-ia retomar outros pequenos volumes – sempre perigosos! – como aquele que há pouco tempo mobilizou jovens por todas as partes, sob o título apocalíptico Indignai-vos!
Indignemos-nos, pois, com o rés-de-chão que nos assola. E façamos da luta cotidiana, nos transportes públicos, entre as massas, um instrumento de transformação. Se houver livros, tanto melhor!
Uma versão reduzida deste artigo foi publicado na coluna Bibliomania da Revista Brasileiros, em julho de 2013.