Quando as Mulheres Invadiram as Tipografias:
Sindicalismo e Feminismo na França (séculos XIX-XX)
Ilustração de Rosinha, gentilmente desenhada para este artigo, em novembro de 2010 |
Desde suas origens, o mundo dos livros se caracterizou pelo
domínio quase absoluto dos homens em todas as etapas de produção, distribuição
e, ainda por muitos séculos, aquisição de volumes. O livro, tal como o
concebemos nos dias atuais, teve seu primeiro impulso na Baixa Idade Média, a
partir dos ateliers monásticos, onde os monges dedicavam-se a todas as etapas
de sua criação, das funções mais hodiernas de leitura em voz alta e cópia dos
textos, até as atividades mais delicadas de ornamentação dos códices
manuscritos, onde as imagens, não raro muito mais do que as letras, entretinham
e informavam leitores e leitoras por todas as partes.
Nesse aspecto, as mudanças foram bem lentas na era
inaugurada por Gutenberg. Do célebre atelier da Mogúncia, donde saíram
verdadeiras obras artísticas impressas por tipos móveis, após 1450, às cidades
florescentes do Velho Mundo – Veneza, Paris, Lyon, Londres etc. – formou-se ao
longo dos séculos um verdadeiro panteão de ilustres fundidores, compositores,
tipógrafos, douradores, encadernadores, revisores e livreiros. Homens que
desempenhavam uma jornada árdua, de até 18 horas de trabalho, o que não nos
deixa dúvidas sobre a complexidade das tarefas realizadas nessas primeiras
oficinas tipográficas. Mas onde entram as mulheres entre os Manuzio, Garamond,
Plantin, Elzevier, Didot, Bodoni, para citar apenas algumas celebridades nessa
verdadeira constelação que a história do livro impresso acumulou?
Alguns números dão bem a medida da progressão lenta, ainda
que constante, da participação feminina nos ofícios do livro. Nos séculos XV e
XVI, são conhecidas 119 mulheres nos ateliers tipográficos franceses; no século
XVII, este número salta para 647 inscritas nas corporações dos profissionais do
livro; no século XVIII, são 966 mulheres, entre elas, a “precisa e precavida
viúva Duchesne”, no dizer de Voltaire; e, de 1800 a 1870, já são 4.692, entre jovens, senhoras casadas e
viúvas[1].
É bem verdade que o espaço fora aberto pelas viúvas de
antigos artífices já no alvorecer da Europa moderna. Mas apenas na qualidade de
viúvas e herdeiras do ofício, situação que mudaria apenas a partir de 1791, com
a abolição das corporações. Assim, ao lado da antiga inscrição Viúva (...) o
mercado editorial francês viu circular as primeiras Mmes. (senhoras), Mlles.
(senhoritas) e até algumas Cne. (cidadãs), bem no espírito das revoluções
silenciosas nascidas no seio de 1789.
A Imprimerie de Femmes
nasceu como fruto da Revolução em sua fase mais radical. Trata-se da primeira
e, ao que tudo indica, única iniciativa de que se tem conhecimento no período
em análise, de uma escola de formação profissional, especializada no ofício
tipográfico e destinada exclusivamente às mulheres. O curso foi idealizado por
um certo Deltufo, artífice do ramo, homem que gozou de certa influência junto
aos seguidores de Robespierre, o que parece se confirmar pelo êxito obtido em
seu empreendimento. Nos primeiros meses de funcionamento a “escola” atendeu a
vários pedidos oficiais: 20.000 exemplares de um relatório de Saint-Just, no 17
Germinal do ano II e, no 7 Floreal, encomendaram-se outros 20.000 exemplares de
“Idéias morais e religiosas sob a ótica dos príncipes republicanos”, de
Robespierre. As encomendas se mantiveram após a morte de Robespierre, em 10 Thermidor do ano II (28 de Julho de 1794),
e a “escola” foi mantida até a morte de seu idealizador. A viúva bem ensaiou
novos contatos para manter a Imprimerie
des Femmes, mas seus esforços resultaram em uma resposta consoladora e
definitiva por parte de um burocrata do Estado[2].
É bem verdade que a maior participação feminina nas oficinas
tipográficas – entenda-se, de jovens trabalhadoras, com idade mínima de 12
anos, até senhoras, viúvas, que se tornaram arrimo de família – acompanha sua
maior inserção no mercado de trabalho, de modo particular, no ambiente fabril. No
que toca o mundo dos livros, observamos, de modo geral, que o projeto
idealizado por Deltufo deitou raízes na nascente indústria francesa, tendo os
novos empresários da mídia impressa logo percebido que a exploração da
mão-de-obra feminina, em idade adulta ou infantil, se lhes afigurava como um
recurso seguro e rentável. Afinal, os operários há muito davam amostras do
efeito perverso das greves para o bom andamento dos negócios do livro e da
imprensa de modo geral[3].
Essas mudanças no mundo do trabalho e do livro, as quais se tornam patentes em meados do Oitocentos, culminaram não apenas na presença da mulher em ambiente ostensivamente masculino, como em sua organização política. Todavia, se a participação da mulher na nascente indústria gráfica constituiu importante fermento para as organizações sindicais nesse setor, a emergência de movimentos feministas, na segunda metade do século, os quais tiveram na França seu principal centro geográfico, concorreu para as primeiras dissensões entre os “operários do livro”, para falar como Paul Chauvet.
Participação das mulheres em diferentes etapas da produção do livro http://autourduperetanguy.blogspirit.com/histoire_litteraire/ |
Essas mudanças no mundo do trabalho e do livro, as quais se tornam patentes em meados do Oitocentos, culminaram não apenas na presença da mulher em ambiente ostensivamente masculino, como em sua organização política. Todavia, se a participação da mulher na nascente indústria gráfica constituiu importante fermento para as organizações sindicais nesse setor, a emergência de movimentos feministas, na segunda metade do século, os quais tiveram na França seu principal centro geográfico, concorreu para as primeiras dissensões entre os “operários do livro”, para falar como Paul Chauvet.
Isso porque, desde muito cedo, como pudemos notar no caso da
Imprimerie des Femmes, houve sérias
resistências à inserção das mulheres nos negócios do livro e do impresso.
Cumpre notar que malgrado o fato de a presença feminina ter se tornado cada vez
mais expressiva no mundo do trabalho (ao lado do homem) apenas muito lentamente
sua imagem se descola da figura da mãe, da musa, enfim, do ente social frágil à
mercê da proteção masculina. E se a imagem da “mulher/mãe-de-família”, ancorada
no modelo familiar burguês, torna-se senso comum em todos os meios sociais, o
destino das militantes não seria mais promissor no meio operário, sobretudo
entre certas tendências socialistas que se tornam dominantes no ambiente das
tipografias, nas décadas de 1840-50. Lembremos, apenas a título de exemplo, das
atitudes francamente antifeministas, senão misóginas, correntes nas fábricas,
as quais culminaram em disputas abertas entre homens e mulheres no movimento
operário, conforme veremos mais adiante. Dentre os militantes socialistas, o
maior exemplo de investida anti-feminista, bem apropriado ao mundo dos livros,
seria o de Proudhon e seu libelo La
pornocratie, ou Les femmes dans les
temps modernes [Paris: A. Lacrois, 1875][4].
Exemplos mais amenos podem ser extraídos do Dictionnaire de l’Argot des Typographes, de Eugene Boutmy [1883], em que são
levantadas as gírias usadas pelos operários do livro. Além das mudanças
sensíveis que se notam nos termos correntes da época em relação àqueles
desfilados pelo pai Séchard de Ilusões
Perdidas, observa-se, de modo geral, que as gírias se encerram em
referências deliberadamente masculinas. À mulher são reservadas as corriqueiras
frases galantes, em geral cantadas em verso, nas quais as associações
MULHER-VINHO-AMOR são exploradas em suas múltiplas variantes[5].
Também a questão da saúde no trabalho afeta diretamente a rotina das typotes, como eram chamadas as operárias dos livros. Particularmente quando se nota em Paris e na Província, a partir de 1860, a emergência de verdadeiros parques gráficos, com suas rotativas a plenos vapores, fato que conduz a uma nova fase de especialização e hierarquização nas oficinas impressoras. Outrossim, a exposição a substâncias altamente tóxicas, como o chumbo, utilizado para a fundição dos tipos, torna-se ainda mais intensa. Logo, se frases de ordem do tipo “Ele não quer nos envenenar, ele prefere nos ver morrer de fome e de sede”[6], como proclamaram as typotes da Imprimerie des Femmes, faziam eco entre as oficinas de modelo artesanal, agora a situação adquiria novos contornos.
Também a questão da saúde no trabalho afeta diretamente a rotina das typotes, como eram chamadas as operárias dos livros. Particularmente quando se nota em Paris e na Província, a partir de 1860, a emergência de verdadeiros parques gráficos, com suas rotativas a plenos vapores, fato que conduz a uma nova fase de especialização e hierarquização nas oficinas impressoras. Outrossim, a exposição a substâncias altamente tóxicas, como o chumbo, utilizado para a fundição dos tipos, torna-se ainda mais intensa. Logo, se frases de ordem do tipo “Ele não quer nos envenenar, ele prefere nos ver morrer de fome e de sede”[6], como proclamaram as typotes da Imprimerie des Femmes, faziam eco entre as oficinas de modelo artesanal, agora a situação adquiria novos contornos.
É o que demonstra um inquérito sobre higiene e saúde na
indústria gráfica, em que são levantados, pela primeira vez, em 1861, as consequências
do trabalho nas tipografias para as typotes.
Segundo o documento,
dos 141 casos de gravidez constatados, foram verificados 82 abortos e quatro partos prematuros. Cinco crianças vieram ao mundo mortas, vinte morreram no primeiro ano, oito no segundo, sete no terceiro e um no quarto. No total, apenas dez das doze crianças haviam passado da idade de três anos[7].
Do ponto de vista organizacional, a polarização de interesses
entre homens e mulheres no ambiente fabril, as próprias condições desiguais de
resistência ao trabalho e à cultura machista, arraigada na sociedade como um
todo, tornaram inviável, senão, árduo o caminho da aliança política. Mesmo
entre os operários do livro. Tal realidade se reflete no esforço de
arregimentação das múltiplas formas de organizações profissionais, entre
associações, ligas, sociedades, sindicatos, em uma única federação da
categoria. Esta nasce apenas em 1885, sob a chancela de Fédération Française
des Syndicats du Livre, após quase um século de luta, em que fatores internos,
relacionados à forte hierarquização no ambiente fabril, somam-se a outros, de
ordem ideológica, geográfica, política e econômica[8].
Imagem do site: http://www.ze-magzine.com |
De fato, o aparecimento do Syndicat des Femmes Typographes,
em março de 1899, resultou da luta de
lideranças feministas reunidas no jornal La
Fronde, sob a direção de Marguerite Durant, pelo direito de se fazerem
representar em uma entidade de classe. Em 1900, seria fundada a Association
Coopérative des Femmes Typographes. Essas organizações se dão em resposta às
represálias movidas contra as typotes pela
Fédération du Livre, em uma longa disputa que atingiu seu clímax em 1901, no
incidente Berger-Levrault. Este e outros incidentes, ocorridos na virada do
século, radicalizaram as tensões entre operárias e operários, colocando em cena
tanto as fissuras entre os movimentos feministas, os quais ganham projeção nas
primeiras décadas do novo século, quanto os pontos de vista de operárias e
operários do setor gráfico. Apenas nos anos de 1910 a Fédération du Livre,
pouco mais tarde organizada sob a forma de uma central sindical, viria a
aceitar a adesão das mulheres. Primeira grande vitória mais de um século após a
criação da Imprimerie des Femmes,
quando as mulheres invadiram o antigo templo dos livros, dominados pelos
homens.
[1]
Dictionnaire Encyclopédique du Livre.
Sous La direction de Pascal Fouché. Paris: Éditions Du Cercle de La Librairie,
2005, vol. II, pp. 203-204.
[2]
Assim escreve o Ministro do Interior no 18 Pluviose, ano IV: “Gostaria de poder
satisfazer o seu pedido, mas todas as impressões do Governo são feitas na
Imprensa Nacional e eu não tenho neste momento nenhum trabalho particular para
vos passar”. Como tradicionalmente a Imprimerie
des Femmes servia aos órgãos públicos, escusado dizer que esta carta
resultou em seu sepultamento. Apud
Paul Chauvet, Les ouvriers du livre en
France. De 1789 à la constitution de la fédération du livre. Paris: Marcel
Rivière, 1956, p. 266.
[3]
Outros empresários ainda mais astutos passaram a contratar famílias de origem
camponesa, de preferência, com boa educação católica, pretendendo, com esta
estranha atitude, manter boas ovelhas em suas oficinas impressoras. Cf. Jean-Yves Mollier, O dinheiro e as letras. História do
capitalismo de edição. São Paulo: Edusp, 2010.
[4]
Dictionnaire de la Commune. Dir. par
Bernard Noël. Paris: Fernand Hazan, 1971.
[5]
Sobre a cultura dos operários tipógrafos, ver artigo de Marguerite Ribérioux em
Histoire de l’édition française. Le temps des éditeurs. Dir. Par
Henri-Jean Martin et Roger Chartier. Paris: Fayard, 1990.
[6] Paul Chauvet, op. cit., p.264.
[7] Armand Lévy, Mémoires pour les typographes, 1862. Apud Paul Chauvet, op. Cit., pp.590-591.
[8]
Dentre os fatores ideológicos, pensemos nas correntes socialistas que percorrem
todo o século, ora colaborando umas com as outras, ora opondo-se umas às outras
em questões pontuais. A questão geográfica se verifica na clássica oposição de
duas cidades fortes no campo da produção impressa, Lyon e Paris, mas, também,
na disputa entre Paris e as regiões provincianas. Finalmente, os fatores
político e econômico, os quais se apresentam como entraves para a unificação
dos operários do livro, considerando o longo ciclo revolucionário e de
instabilidade francês, o qual se estende até 1870, quando se inaugura a III
República (a mais longa da História daquele país).
[9]
Para uma análise mais global e aprofundada dessa questão, cf. Mary Lynn Stewart, Women,
work and french State. Labour protection and social patriarchy (1879-1919). Quebec: Queen’s University Press, 1989.
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