Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O Brasil que anda para trás

Da destruição dos livros ou o Brasil que anda para trás


“Quem destrói um livro mata a própria Razão”. John Milton, Aeropagitica, 1644.



Há algo de extraordinariamente atual na abertura de Pra Frente Brasil (1982), filme de Roberto Farias. O bordão do país do futebol e do milagre econômico que dá nome ao filme invade a tela em marcha a ré, enquanto o BRASIL, grafado em caixa alta, retrocede, avança e estaciona, cambaleando na tela. Cria-se, assim, uma forma de oximoro visual. É como se o termo da moda de hoje, RENOVAÇÃO, retroagisse em velocidade vertiginosa sobre a imagem de um BRASIL que teima em andar pra trás.
A proposta de rever a história recente da Ditatura Militar nos livros didáticos e os ataques aos livros da Biblioteca Central da Universidade de Brasília (UnB) constituem provas eloquentes de um país cambaleante.
Sabemos que um fato e outro estão estreitamente relacionados, pois ambos representam a própria negação da história. Enquanto o revisionismo busca superar uma ideia, mesmo que para isso ele se sobreponha às evidências dos fatos – quantas vezes é preciso afirmar uma mentira para que ela se torne verdade? – o ataque aos livros tem raízes mais profundas, na medida em que se apresenta como o ato físico e brutal de destruição da memória.
Em História Universal da Destruição das Bibliotecas, Fernando Báez enumera uma série de eventos nos quais o ataque aos livros ocorre de forma calculada. É o que vemos na noite da queima dos livros, promovida por Goebbels, em 1933, logo após a ascensão do nazismo. Em Sarajevo, o bombardeio certeiro e prolongado à Biblioteca Nacional, em 1992, não teve outro propósito, senão o de estender ao livro a mesma prática de genocídio que se cometia contra toda uma população.
Os livros remanescentes da luminosa Alexandria, conta Luciano Canfora, alimentaram as caldeiras dos banhos públicos, por ordem do califa Omar, em 642. Ele justificara a sua ordem com um argumento irrefutável: “se seu conteúdo está de acordo com o livro de Alá, podemos dispensá-los, visto que, nesse caso, o livro de Alá é mais do que suficiente. Se, pelo contrário, contêm algo que não está de acordo com o livro de Alá, não há nenhuma necessidade de conservá-los. Prossegue e os destrói”.
Moral da história: quando são destruídos os livros, os homens se calam; perecem; morrem. E a história pode então ser contada de um único ponto de vista.

Dentre os títulos destruídos na Biblioteca Central da UnB, salta aos olhos o volume de Direitos Humanos, Imagens do Brasil, organizado por Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC. Outras edições desta mesma seara não passaram incólumes da ação voraz e destrutiva desse biblioclasta incontido. Mas sabemos bem que a destruição dos livros visa à aniquilação da humanidade, naquilo que lhe é mais caro, a saber, sua memória. Parece, nesse sentido, bastante sintomático que os volumes de direitos humanos, justamente estes, tenham sido os primeiros a periclitar. Como perdoar todos os esforços despendidos pelo Ministério dos Direitos Humanos, por suas secretarias e pelas Comissões da Verdade, setoriais e nacionais, que nos últimos anos tentaram resgatar a memória e a história de homens e mulheres vitimados pela violência da ditadura militar? Resgatar, enfim, um tempo soterrado sob a marca da “cordialidade” brasileira, mal disfarçada pela cortina da anistia.
Das páginas esquartejadas, arrancadas e esganadas de alguns volumes, que podem se converter em muitos outros volumes, em milhares ou milhões deles, como naquela noite terrível, em que os livros arderam em chamas, em que a humanidade ardeu em chamas, vitimada pela loucura nazista, o que sobrará para ser narrado às novas gerações? A história de um país que se renova caminhando para trás? A história de um povo que se encerrou em um solilóquio profundo, como aqueles personagens tristes, retratados por Ray Bradburn, em Farenheit 451?
O momento é delicado. Ele demanda muita atenção e inteligência, sob a pena de se colocar o joio e o trigo num mesmo saco. É preciso compreender um gesto isolado, como este, da destruição dos livros no interior de uma biblioteca universitária, como a extensão de confrontos cotidianos, travados com a força das palavras e das armas. Pois não nos enganemos: a destruição dos livros é a marca da intolerância, no passado, no presente e no futuro. Mas qual futuro? Um futuro que se apoia em um estado de violência permanente, que se nutre do desespero ou do ódio? Nesse futuro, certamente os livros e os homens perecerão.
O futuro dos livros e da humanidade é o do diálogo, do debate, do uso da razão. É bem verdade que a difusão daquela imagem pungente de um volume esquartejado, tal como foi divulgada pela grande mídia, provocando reações várias, em diferentes segmentos da sociedade, nos faz acreditar que ainda resta uma esperança. A de que o livro e a ideia possam ainda superar essa onda de intolerância e de miséria que paira sobre nós. A ideia de que é preciso caminhar pra frente. E que, para começar, basta dar um primeiro passo.

Artigo publicado originalmente no Jornal da USP, https://jornal.usp.br/artigos/da-destruicao-dos-livros-ou-o-brasil-que-anda-para-tras/

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Museu Nacional. Luto Nacional. Vergonha Nacional. Desolação Mundial.

Seria um não acabar mais o querer mostrar que, graças a colecionadores particulares, muito tesouro é salvo. No Brasil então, onde a administração pública, além de ignorante é desmazelada e demagógica, se não fosse o colecionador particular, o bicho, a sujeira e o clima destruiriam tudo que o nosso passado nos legou.
Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, 1965.


Enviado pelo bibliófilo, amante dos livros, Luís Pio Pedro

domingo, 5 de agosto de 2018

Exposição: A ILUSTRAÇÃO COMO PORTA PARA O MUNDO

Confiram as obras dos mais renomados ilustradores de livros infantis do mundo! Oportunidade única. Visita imperdível! Segue abaixo o press-release da curadoria. 


A ILUSTRAÇÃO COMO PORTA PARA O MUNDO
50 anos da Mostra de Ilustradores da Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha

O Sesc Bom Retiro recebe pela primeira vez no Brasil uma exposição em parceria com a Feira de Bolonha, organizada pelo Instituto Emília e realizada pelo Sesc São Paulo. Esta parceria, em torno da Mostra realizada em 2016 em Bolonha (Itália), por ocasião dos 50 anos da Mostra de Ilustradores da Feira, ficará em cartaz de 09 de julho a 14 de outubro de 2018.

A Ilustração como porta para o mundo é a versão brasileira da mostra realizada em Bolonha em 2016, que traz além dos 50 artistas escolhidos pela curadoria de Paola Vassalli, um complemento com 5 artistas brasileiros escolhidos sob a curadoria de Dolores Prades.
A Mostra internacional está dividida em 5 décadas: 1967 – 1976, 1977 – 1986, 1987 – 1996, 1997 – 2006, 2007 – 2016, cada uma representada por 10 ilustradores que marcaram sua época. Muitos deles são pouco conhecidos pelos leitores brasileiros, mas foram decisivos na história da ilustração:

1967 – 1976:
1.    Francesco Tullio-Altan (Itália) 
2.    Eric Carle (USA)
3.    Patrick Couratin (Franca) 
4.    Helme Heine (Alemanha) 
5.    Emanuelle Luzzatti (Itália) 
6.    David Macauly (USA) 
7.    Iela Mari (Itália) 
8.    Bruno Munari (Itália) 
9.    Ralph Steadman (Inglaterra) 
10.  Stepan Zavrel (República Tcheca) 

1977 – 1986:
1.    Jean-Louis Besson (França)
2.    Quentin Blake (Inglaterra)
3.    Stasys Eidrigevicius (Lituânia) 
4.    Monique Felix (Suíça) 
5.    Robert Ingpen (Austrália) 
6.    Roberto Innocenti (Itália) 
7.    Dusan Kallay (Bratislava)
8.    David Mckee (Inglaterra) 
9.    Tony Ross (Inglaterra) 
10.  Lisbeth Zwerger (Viena) 

1987 – 1996:
1.    Jean Claverie (França) 
2.    Klaus Ensikat (Alemanha) 
3.    Georges Lemoine (França) 
4.    Yan Nascmbene (Franca) 
5.    Kveta Pacovská (Polônia) 
6.    Cris Raschka (USA) 
7.    Alfonso Ruano (Espanha) 
8.    J. Otto Seibold (USA) 
9.    Max Velthuijs (Países Baixos) 
10.  Piero Ventura (Itália) 

1997 – 2006:
1.    Beatrice Alemanha (Itália) 
2.    Arnal Ballester (Espanha) 
3.    Eric Battut (França) 
4.    Chiara Carrer (Itália) 
5.    Svjetlan Junakovic (Zagrev) 
6.    Taro Miura (Japão) 
7.    Fabian Negrin (Argentina) 
8.    Bente Olesen Nyström (Dinamarca) 
9.    Vladimir Radunsky (Rússia) 
10.  Shaun Tan (Austrália) 

2007 – 2016:
1.    Ofra Amit (Israel) 
2.    Bernardo Carvalho (Portugal) 
3.    Maja Celija (Eslovênia) 
4.    Mara Cerri (Itália) 
5.    Philip Giordano (Japão) 
6.    Anne Herbauts (Bruxelas) 
7.    Suzy Lee (Coréia) 
8.    Nooshin Safakoo (Irã) 
9.    Alessandro Sanna (Itália)            
10.  Klaas Verplancke (Suíça) 

A mostra paralela não é apenas um “adendo” à exposição internacional, trata-se de uma pequena, mas significativa seleção do panorama da ilustração brasileira das últimas décadas. É difícil retratar a riqueza da nossa produção através de 5 representantes, mas neste contexto, optamos por enfatizar a diversidade de estilos e de narrativas visuais que marcaram as principais tendências da ilustração brasileira nacional e internacionalmente. Os ilustradores que participam são: 

1.            Daniel Bueno
2.            Fernando Vilela
3.            Mariana Zanetti
4.            Marilda Castanha
5.            Odilon Moraes


Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha (Bologna Children’s Book Fair) é o principal ponto de referência mundial do livro para crianças e jovens. Criada em 1964, a Feira é considerada um dos eventos culturais e centros de crítica de maior prestígio, credibilidade e ressonância mundiais do livro para a infância.

Ponto de referência para todos os agentes que trabalham em torno do livro infantil e juvenil (autores, ilustradores, editores, agentes, mediadores), a Feira é responsável, ano após ano, pelo panorama da produção mundial a partir do qual se estabelecem as tendências e os grandes nomes no mercado internacional.

Dentre as diversas ações promovidas pela Feira, a Mostra dos Ilustradores, criada em 1967, é uma das mais importantes. Para os ilustradores, a Mostra se converteu no espaço privilegiado para veiculação dos seus trabalhos e de seu nome no plano internacional. Os catálogos produzidos a cada Feira a partir de 1971 se tornaram instrumentos de pesquisa para todos os agentes do mercado. Depois de 50 anos, à luz da Mostra que festejou este aniversario, é possível afirmar que é, sem dúvida, a responsável pela formação de gerações de ilustradores e das principais tendências a partir das quais se desenvolveu o livro ilustrado.

Meio século de história não é pouco. A Mostra dos 50 anosrepresenta esta rica trajetória escolhendo um ilustrador a cada ano, de modo a dar um amplo panorama do que foram os 50 anos da Mostra. Para além deste panorama, a importância da Mostra é histórica, pois a partir dela é possível reconstruir e conhecer os principais momentos, as rupturas e inflexões da ilustração nas últimas décadas.

Daí a importância desta exposição, que percorre e indica trajetórias marcantes, que definiram as principais tendências e pontos altos do desenvolvimento do livro infantil e juvenil. Trata-se de uma Mostra histórica que amplia referencias, possibilitando assim uma educação estética do olhar. O contato com este panorama de excelência do mundo da ilustração só enriquece a formação de leitores e o trabalho de todos os envolvidos com a promoção e produção do livro para crianças e jovens.

Praticamente todos os grandes autores/ilustradores que marcaram as principais tendências do livro ilustrado nas últimas décadas passaram e foram selecionados pela Mostra dos Ilustradores.


Espaço de exposição. 2º andar.
Grátis.
Abertura: 09/07, às 11h.
De 11/07 a 14/10
Terça a Sexta das 9h às 21h. Sábado, das 10h às 21h. Domingos e feriados, às 10h às 18h.
Grupos poderão fazer o agendamento através do e-mail agendamento@bomretiro.sescsp.org.brou pelo telefone (11) 3332-3668.

Endereço Sesc Bom Retiro
Al. Nothmann, 185 – Campos Elíseos.
Acessibilidade:Entrada com acesso para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida.
Estacionamento próprio. 
Valores: Com apresentação de Credencial Plena - R$ 5,50 até uma hora; R$ 2,00 adicional por hora.
Não credenciados - R$ 12,00 até uma hora; R$ 3,00 adicional por hora.
Horário de funcionamento da unidade: de terça a sexta, das 9h às 21h; sábados das 10h às 21h; domingos e feriados, das 10h às 18h.
Mais informações pelo telefone 3332-3600; pelo portal www.sescsp.org.br/bomretiro.

Atendimento à Imprensa Contato: Geraldo Ramos Jr (11) 3332-3738imprensa@bomretiro.sescsp.org.br

sábado, 23 de junho de 2018

Para Angela Lago (1945-2017)

Angela-Lago, uma homenagem tardia

Angela-Lago, cuja assinatura nos livros tem nome e sobrenome ligados por um hífen, nos deixou em outubro de 2017. Nesses tempos ela morava nos sertões das gerais e faleceu na capital, Belo Horizonte.
Não a conheci pessoalmente. Nosso diálogo se deu através dos livros. Às vezes eu penso que Angela-Lago nunca existiu como uma figura de carne e osso como nós. Seus trabalhos me fazem pensar que ela transcendeu a matéria desde sempre.
Nesses dias, folheando algumas de suas muitas e incríveis publicações, eu me dei conta do quanto o seu trabalho explora a materialidade do livro. E do quanto essa exploração faz de cada um de seus livros um universo expressivo, onde capa, miolo, papel, tipografia, ilustração, encarte, cinta, encadernação, formato, cores, fitilhos, enfim, onde todos os elementos que compõem a anatomia do livro aparecem combinados. Mais do isso, esses elementos comunicam.
Eu tenho insistido com meus alunos de graduação e pós-graduação nesse aspecto pouco explorado na academia que é o do “livro como forma expressiva”. A fórmula vem emprestada de um bibliógrafo neozelandês, D. F. McKenzie, que atuou toda a sua vida na Inglaterra, onde se graduou e apresentou importantes contribuições à ciência bibliográfica. Talvez a mais importante tenha nascido justamente do seu incômodo com relação ao formalismo acadêmico com que a disciplina bibliográfica era tratada. O que certamente a distanciava de outros campos de estudos das Humanidades.
Mas quando folheamos e lemos os livros publicados por Angela-Lago, todos esses elementos textuais, que vão da matéria à escrita textual propriamente dita, têm uma relação orgânica tão forte, que podemos até mesmo dizer que os livros de Angela-Lago são lidos com os olhos, com os lábios, com o nariz e com as mãos.
É o que acontece com O Livro de Horas, que apresenta a tradução livre de 24 poemas de Emily Dickinson. Dir-se-ia, um belo códice impresso e iluminado. Os motivos das iluminuras certamente foram inspirados nos códices manuscritos dos séculos XIV e XV, quando a arte de ilustrar ofereceu aos livros ramos de folhagens delicados, ornados em ouro, lápis-lazúli e rubi, entre tantas outras preciosidades. Mas também como fotografias de paisagens que dialogam com os textos. E as horas são demarcadas por estados de espírito inspirados na escrita da poeta norte-americana Emily Dickinson.
Para terminar essa homenagem tardia, registro uma passagem, “Para a Hora da Paixão”:
Diminutos rios – dóceis a algum mar azul
Meu Cáspio – tu.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Defesa de Dissertação de Mestrado - PPGHE - FFLCH-USP

Editar a Revolta: Edição e Circulação de Impressos Anarquistas em Buenos Aires (1890-1905)

Eduardo Augusto Souza Cunha


Banca Examinadora:
Horácio Tarcus - Universidade de Buenos Aires
Lincoln Secco - Universidade de São Paulo
Rodrigo Rosa da Silva - Universidade Federal de Santa Catarina

Presidência:
Marisa Midori Deaecto - Universidade de São Paulo

LOCAL: 
Prédio da Administração da FFLCH-USP
Sala 114

DATA/HORÁRIO
07/06/2018
14H30

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Livro: Tradição, Inovação

Tradição

Conta-se que logo após a impressão das primeiras Bíblias, no então desconhecido ateliê tipográfico de Johannes Gutenberg, situado na pequena Mogúncia (atual Mainz), seu sócio e financista Johan Fust correu para Paris com uma dúzia de exemplares, afim de converter em dinheiro os livros recém-impressos. No velho Quartier Latin, onde pulsava uma vida universitária e a economia do livro manuscrito medrava, a desconfiança foi enorme. Um homem germânico de posse de uma dúzia de Bíblias idênticas? Isso só poderia ser coisa do demônio! Não demorou Fust passar por Faust... e fugir de Paris. Um quarto de século mais tarde, a mesma Paris dos mestres copistas, encadernadores, livreiros e pergaminheiros, viria a ser um dos principais centros tipográficos da Europa. 
Não há inovação que se imponha sem desconfianças e resistências. 
A Bíblia de Gutenberg, a famosa Bíblia de 42 linhas – o fac-símile acaba de ser publicado pela editora Taschen, sob a direção de Stephen Füssel – consiste em um testemunho material eloquente dos meios e do esforço aplicado por seu criador para que aquele livro, detentor de uma revolução sem precedentes, reproduzisse, sem maiores alardes, as Bíblias manuscritas então em voga. É que a inovação técnica, para Gutenberg, não teria valor se não correspondesse à tradição, ao gosto dos leitores. 
Todavia, a invenção da imprensa significou “a primeira revolução midiática” do Ocidente, ao abalar toda a estrutura do sistema de comunicação e da própria sociedade, em meados do século XV, como afirma Frédéric Barbier[1], em estudo recém-publicado no Brasil. De modo análogo, uma nova revolução no sistema de comunicação se anuncia, há pelos menos duas décadas. Passado e presente nos convidam a refletir sobre o impacto das tecnologias de informação e comunicação sobre o livro.

Revolução/Inovação

A maior invenção do novo milênio aparece sob a forma do livro digital, ou e-book. Os suportes eletrônicos apresentam muitas qualidades em relação aos livros: em um mesmo objeto podemos armazenar bibliotecas tão extensas que não poderão ser lidas no espaço de uma vida; eles são leves e portáteis, tanto quanto os celulares, os quais, na verdade, têm se mostrado muito mais úteis, até para a leitura; a tela é iluminada, o que permite ler em qualquer ambiente. Entre essas e muitas outras vantagens, vale dizer que o livro eletrônico não se desprendeu do livro tradicional no que toca às formas de leitura. Ele simula o barulho da folha, reconstitui a composição da página e a estrutura do texto impresso. Talvez porque a tradição, no caso das práticas de leitura, seja mais resistente a mudanças do que a própria concepção do objeto. Cumpre assinalar, inclusive, que o e-bookpoderia ter outro nome qualquer, não fosse a força da palavra-ideia livro.
Esses suportes têm sido alvos de tantas comparações que, hoje em dia, é difícil tomar um partido seguro. Livros eletrônicos e textos digitais compõem a vida de leitores e leitoras de diferentes gerações, tão naturalmente quanto os livros e os textos impressos. Mas seria um erro afirmar que texto e livro se confundem. Os textos são inerentes aos suportes, poder-se-ia mesmo admitir que os suportes compõem textualidades, de tal forma que o continente não se aparta do conteúdo. E todos esses elementos se integram e interagem em um mesmo sistema midiático. 

Tradição/ Revolução

Notemos que da mesma maneira que Gutenberg se esforçou para guardar no livro impresso os componentes de uma tradição manuscrita, também as novas tecnologias se esforçam para preservar o que há de melhor na tradição impressa. As tecnologias tornaram até mesmo possível o acesso ilimitado e sem fronteiras aos livros depositados nas bibliotecas do mundo! 
Então, por que ferir a tradição e forçar o tempo?
Desde o século XV, a inovação que representou o livro impresso se ancorou nas sociedades desenvolvidas, para então se difundir na direção das semiperiferias e periferias em escala mundial. O movimento é lento, sobretudo quando se trata de atingir diferentes camadas leitoras de uma dada sociedade. Leitores se apoiam na tradição, pois as próprias instituições formadoras – desde as escolas primárias até as próprias bibliotecas – são resistentes às transformações. É preciso respeitar o tempo e as tradições de cada cultura. 
O próprio mercado sinaliza essa realidade: os livros impressos superam em produção e vendas os e-books. Porém, em alguns circuitos não faz sentido insistir nos velhos e ultrapassados códices, particularmente nos setores universitários, cujas pesquisas, fortemente associadas às demandas da indústria e do consumo de tecnologias, consistem justamente em forçar o tempo e desafiar a tradição.  
Diante de realidades às vezes discrepantes, o que fazer? Impor uma mídia sobre a outra? Fechar as livrarias, exigir das editoras um compromisso maior com os livros eletrônicos, alterar o tempo de aprendizado dos leitores, obrigar toda uma sociedade a ler afórceps?
Um outro paralelo pode ser útil. Sabe-se que durante a Revolução Francesa as bibliotecas principescas e religiosas foram saqueadas, pois elas simbolizavam um passado e um regime que deveriam ser superados. O que foi feito dos livros? Eles foram acomodados em modernas bibliotecas públicas, mantidas pelos municípios. Mutatis mutandis, podemos dizer que no processo revolucionário, o caminho mais sábio é aquele que tira partido da tradição em proveito do desenvolvimento e do progresso. 
É preciso converter a tecnologia para o bem da cultura. Livros impressos são ainda necessários, tanto quanto as livrarias e toda a cadeia produtiva que ele movimenta. Os livros impressos disponibilizam materialmente um mundo ainda pouco desbravado pelos jovens leitores brasileiros, muitos deles ingressantes nas universidades. E isso não se faz em detrimento das mídias eletrônicas e dos novos suportes, elas conformam hoje um circuito paralelo e igualmente rentável. 
Além disso, sabemos que o sucesso da inovação no campo da leitura só é possível sobre um terreno bem cimentado de leitores. Noutros termos, não há inovação que se imponha sem uma tradição bem fundada.
Publicado em: https://jornal.usp.br/artigos/livro-tradicao-inovacao/


[1] Frédéric Barbier, A Europa de Gutenberg. O Livro e a Invenção da Modernidade Ocidental (Séculos XIII-XVI). São Paulo: Edusp, 2018.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Lançamento: Guilherme Mansur em Editando o Editor, n.9

Fui alfabetizado por uma caixa tipográfica.


Guilherme Mansur tem um perfil profissional raro, pois suas atividades estão todas articuladas à cadeia produtiva do livro, desde a concepção de uma ideia, passando pela ideia de uma página, até atingir o próprio suporte dessas ideias, ou seja, o livro.
Eu digo isso porque é muito raro encontrar nos dias de hoje uma figura tão plural e, ao mesmo tempo, tão única. E por que essa raridade? Por que desde a invenção dos tipos móveis, a tipografia e, mais propriamente, a produção do livro obedeceu a uma tendência multissecular de profissionalização e especialização que atingiu seu zênite no século XIX, quando houve uma distinção mais evidente entre o Publisher, o Editor e o Operário Gráfico. E quando falamos em operários gráficos queremos dizer que o ambiente da impressão se descolou completamente do ambiente de produção intelectual e o gráfico passou a condição de operário assalariado, ou seja, trabalhador desprovido de seus meios de produção.
Mas, quando lemos esse belíssimo relato de Guilherme Mansur, essas fronteiras ficam menos claras. Há muita atividade intelectual e criativa em um atelier tipográfico. Da mesma maneira que a poesia e a escrita se constrói com muito suor, é trabalho mental e corporal.
* * *
Guilherme Mansur nasceu em Ouro Preto, em 1958, onde reside até hoje. E, como ele mesmo relata, “fui alfabetizado por uma caixa tipográfica".
Editou, no sentido mais amplo possível da palavra, clássicos da literatura, mas, também, autores jovens, que viriam a escrever páginas importantes na história das vanguardas artísticas. Considerando o catálogo de publicações da Tipografia do Fundo de Ouro Preto e de outros selos para os quais contribuiu, podemos enumerar: ....
Guilherme Mansur, o nono volume da Coleção Editando o Editor, uma publicação da Com-Arte e Edusp, foi organizado por Simone Homem de Mello, uma importante e fecunda artífice das palavras.

sábado, 12 de maio de 2018

O Título de um Livro, de Lincoln Secco

Lincoln Secco me enviou esse belo artigo e pediu que eu publicasse em nosso blog.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/24/politica/1516815938_008656.html
O tempo anoitece as leituras. Aos dezessete anos eu estava entre perdido e apaixonado nas manhãs da USP. Eram tempos de cursar as letras, ler a Crestomatia Arcaica com as canções medievais, estudar a morte na literatura, os volumes infindos do padre Bernardes, as edições originais dos livros de Otto Maria Carpeaux, que os li todos. Estranhava os títulos : Origens e Fins, a cinza do purgatório... Tanto quanto os belos que me caiam às mãos : Amor de Perdição, admirável mundo novo, os donos do poder, casa grande e senzala.... Ou o mais encantador da colônia, mais que Cultura e Opulência do Brasil. Lembro do Divertimento admirável para os historiadores curiosos observarem as máquinas do mundo reconhecidas nos sertões da navegação das minas de Cuiabá.
Um dia um jovem professor me viu com A Gloria de Cesar e o Punhal de Brutus, de Alvaro Lins. Alguém ainda lê isso? Não podia responder que só porque o título me atraía. E que um livro vale não pela capa, mas às vezes pelo título. Desculpe professor, peguei ao acaso. Murmurei. Como podem ser belos os de alguns livros fortes: Esta Noite a liberdade, as veias abertas da América Latina, os condenados da terra...
Nos sebos dos anos 1980 um livro despedaçado na Rua Rodrigo Freitas sempre me chamava a atenção : Tratados, Farrapos de Papel. Era uma frase do chanceler alemão Bethmann Hollweg. Hoje eu sei. Não havia ainda para mim os historiadores, só o teatro da coleção abril e seus Pirandello, Albee e Ibsen que um astrólogo Fernando Guimarães me emprestava antes de partir para San Francisco. E o cheiro de terra e sangue nos contos de Verga. E Italo Svevo. Alberto Moravia lido à espera do amor não correspondido. Uma tarde, depois do bandejão, fechei os olhos na última página do diário de Cesare Pavese : “Non scriverò più “. E não mais escreveu. Matou – se o autor de A Lua e as Fogueiras. O combatente antifascista.
Eu lia insaciado entre os estudantes desapressados do Crusp. Veronica me oferecia Lula : a biografia de um operário e Eduardo o Pai Patrão. E eu perambulando pelas bancas de livros usados do Evandro e do Jai, no DCE Livre onde havia a menininha Isadora antes de saltar da vida, a dançarina Raquel, os punks do uspício, os poemas ainda não escritos de Heitor, as esperanças do Mao na Revolução, os olhos da Silvia. Ubi sunt? O professor Davi Arrigucci falava “Bakhtin” enquanto salivava envolto com as próprias ideias. Ali ruminava suas Leituras de Manuel Bandeira. Elias intentava um romance, Eduardo uns versos e todo mundo queria a poesia. Eu lia só os títulos enquanto imaginava Raquel selar as cartas que me enviava com seus lábios adstringentes. E pareciam dizer: vamos viver no nordeste. Vamos viver de brisa.
Numa livraria tantos anos depois eu procurava um título que desejo com todas as minhas vontades : Tous les chevaux du Roi de Michele Bernstein. Ah, que título. Mas meus olhos se espantam entre as lombadas da estante com “A história de um mentiroso “, um Bakhtine Démasqué... Folheei triste, deixei. E o pesquisador Bruno Gomide da USP descobre que Otto Maria Carpeaux plagiou Walter Benjamin... O meu Carpeaux! Na imprensa leio editoriais fascistizantes, notícias verdadeiras (prefiro as falsas) e que o escritor brasileiro mais rico recebe um repórter em sua pequena mansão Suíça. Nela não há um único livro.
Tempos de restauração. Sei que no Sul do país um ex presidente lê num cárcere. E se dessa vez eu fosse viver no nordeste?

segunda-feira, 12 de março de 2018

As Bibliotecas de Maria Bonomi

Nas bibliotecas de Maria Bonomi todas as formas se multiplicam ao infinito


Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.

Jorge Luis Borges

Domos, cúpulas, cimalhas, colunas, janelas, portais, salões, alcovas, desvãos, corredores, galerias, armazéns, subterrâneos, armários, estantes, correntes, pinturas, talhas, pedra, mármore, granito, ferro, espelhos, vidro, aço... as arquiteturas das bibliotecas evocam o que há de mais avançado em termos de construção civil, no presente e no passado. É possível que essa tradição de se reservar aos livros um espaço nobre remonte aos tempos gloriosos da Biblioteca de Alexandria (s. III a.C.).Os cataclismos que atingiram a capital vibrante do Egito, na antiguidade tardia, reduziram os traços físicos da Biblioteca a imagens fugidias, registradas na literatura. Deve-se a Estrabão (63-20 a.C.) as melhores descrições do sítio e da planta do Museu (Mouseiôn, ou templo das musas). Sabemos hoje que a biblioteca não constituía um edifício independente, pois os livros eram depositados em estantes no grande salão do museu, ou nas bibliothékai, na acepção original grega. Donde a confusão metonímica que ativou durante séculos a imaginação das gentes na busca de um palácio dos livros.
Plinio Martins Filho e Maria Bonomi, editor e artista

No Atelier de Maria Bonomi,
 as gravuras em exposição

Na ausência de uma imagem que tenha fixado o modelo daquele antigo templo dos livros que o homem destruiu, mas que não se apagou da memória das civilizações, toda biblioteca se converteria, por extensão, em uma releitura do museu alexandrino. As primeiras bibliotecas que compõem esse volume testemunham a grandeza dos palácios reservados aos livros na Renascença italiana. Na richissime sala Sistina, da Biblioteca Vaticana, afrescos representativos das principais bibliotecas antigas (Babilônia, Cesareia, Pérgamo, Alexandria...) guardam a memória do mundo, ao lado dos mitos fundadores de uma civilização antiga, que fincara suas raízes no ocidente, embora tenha sido suplantada pela Igreja cristã.Essas imagens se multiplicam por séculos a fio e se traduzem, hoje, em uma arquitetura imponente, tecnológica, comandada pelo uso indiscriminado do concreto, do aço e do vidro. Novas bibliotecas surgem todos os anos, por todas as partes, desafiando as leis do espaço e as tecnologias de informação e comunicação. Alguns edifícios parecem planar sobre as cidades, outros se convertem nas próprias cidades. Uma cidade poderosa, guardiã da memória do mundo e dos reis, seguindo os modelos das bibliotecas principescas e religiosas do Antigo Regime, as quais demoravam a se converter em instituições nacionais, respondendo às ingerências de um século XIX em plena revolução. E uma cidade inteligente, agregadora, cidadã, seguindo os modelos em evidência nos tempos atuais.
Assim, os registros que compõem esse volume não pretendem esgotar as múltiplas possibilidades de edificação e décor das bibliotecas. Os traços de Maria Bonomi são recursos narrativos ou releituras de formas variadas que não se esgotam. Pelo contrário, suas bibliotecas se multiplicam ao infinito.
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LANÇAMENTO:
15/03/2018 - QUINTA-FEIRA, 18 HORAS
BIBLIOTECA GUITA E JOSÉ MINDLIN - USP

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Sob os escombros da Biblioteca de Sarajevo

Livros sob os escombros de Sarajevo

1992 - A Biblioteca de Sarajevo sob os escombros.https://calledelorco.com/2015/06/28/el-hombre-que-salvo-la-haggadah-de-sarajevo-alberto-manguel/
Em Lamento por Vijecnica, do poeta bósnio Goran Simic (1993), podemos sentir a dor de uma vida despedaçada entre livros:
A Biblioteca Nacional queimou nos últimos três dias de agosto e a cidade se afogou com a neve negra.
Liberados os montes, os caracteres vagaram pelas ruas, misturando-se aos transeuntes e às almas dos soldados mortos.Vi Werther sentado na cerca arruinada do cemitério; vi Quasímodo se equilibrando com uma das mãos no minarete.Raskolnikov e Mersault cochicharam juntos durante dias em meu sótão; Gavroche se eximiu com uma camuflagem cansada.Yossarian já se vendia ao inimigo; por uns poucos dinares o jovem Sawyer mergulhava longe da ponte do Príncipe.Cada dia mais fantasmas e menos pessoas vivas; e a terrível suspeita se confirmou quando os esqueletos caíram sobre mim.Encerrei-me na casa. Folheei os guias de turismo. E não saí até que o rádio me dissesse como eles puderam apanhar dez toneladas de carvão no subterrâneo mais profundo da queimada Biblioteca Nacional.
A Biblioteca de Vijecnica, ou simplesmente, a Biblioteca Nacional da Bósnia e Herzegóvina, em Sarajevo, sofreu o primeiro de muitos ataques na noite de 25 de agosto de 1992, por ordem do general sérvio Ratko Mladic. Sucumbiram ao fogo inimigo 1,5 milhão de volumes, 155 mil obras raras, 478 manuscritos, milhões de periódicos nacionais e estrangeiros. O fim trágico desse belo edifício fundado em 1886 não foi o único a compor esse capítulo a que Fernando Báez chama de livrocídio. Jamais na história da destruição dos livros, observa o autor, bibliotecas inteiras, senão, todo o patrimônio cultural de um povo foi destruído com a finalidade de se eliminar não apenas um povo, mas a sua história, a sua memória, os seus traços. 
Ocorre que as bibliotecas são instituições universais por natureza. É esta sua vocação, desde os tempos de Alexandria, senão antes. Resguardar todo o conhecimento, toda a memória da humanidade. Quando se destrói por completo uma biblioteca, não se comete apenas o livrocídio, a limpeza étnica, tal como fora praticada em Sarajevo. Boa parte da memória do mundo estava ali, inscrita nos escombros. Como diz o poeta Simic, morreram Werther, Quasímodo, Gavroche, Saywer...
E como os livros constituem mercadorias dotadas de um poder simbólico invulgar, parece evidente que a população de modo geral se compadeceu diante do trágico destino dos livros e da biblioteca. A comunidade internacional colaborou igualmente para a reconstrução do edifício e da biblioteca, de tal maneira que a Biblioteca Vijecnica, ou Biblioteca Nacional Universitária da Bósnia Herzegóvina, foi reinaugurada em 2014.

Sem dúvida um exemplo radical de biblioclastia que pôs à prova o poder do livro, e que não deve jamais ser esquecido e tão pouco repetido.
DIGA NÃO À BIBLIOCLASTIA