Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Jerusa Pires Ferreira, da Escrita do Mundo à Cultura das Bordas

Uma homenagem

Edmir Perroti e Jerusa Pires Ferreira, colegas da ECA, 2012.

Viajo segunda-feira
Feira de Santana...
Mas se eu trouxer de volta
O desencontro choroso
Da missão desincumprida
Devolvo seu envelope
Intacto, certo e fechado
Odeio disse-me-disse
Condeno a bisbilhotice.

Tom Zé. 





Jerusa Pires Ferreira
nasceu em Feira de Santana (BA), em 1938. Para o viajante que parte do sertão das Minas em direção a Salvador, passando por Governador Valares, Vitória da Conquista e Jequié, Feira de Santana se apresenta como uma campina aberta, de ruas bem traçadas, que ostenta no nome sua função primordial: o trato de víveres e de toda sorte de mercadorias que liga o sertanejo à cultura do litoral. E vice-versa.
Assim era Jerusa, uma figura circular. Transitava com elegância e inteligência entre uma borda e outra: da fina cultura europeia, aprendida no lar, sem, todavia, desprender-se dos cheiros, dos sons, das cores e das gentes que viviam ao seu redor. Sua conversa era circular, tanto quanto sua escrita. Pois nada lhe escapava. Sua prosa transitava, com a mesma leveza e interesse, de um conto de Púshkin, que acabara de ler, empolgada, às versões escritas e transcritas daquela mesma referência para o cordel, respeitando, agora, a musicalidade, o acento e o enredo próprios do sertão. E se a tarde se tornasse verdadeiramente inspiradora, não demorava a empunhar seu batom e partir para uma roda de conversa e música entre os jovens. Era quando a fênix renascia....
Professores da ECA: Edmir Perroti, Jerusa Pires Ferreira,
Plinio Martins Filho e Marisa Midori, 2012.
Professoras Alice Mitika, Jerusa Pires Ferreira
e Edmir Perroti, 2012.
A vida acadêmica se desenrolava com a mesma alegria e inteligência. Como semioticista consagrada, circulou em diferentes mundos da escrita e do oral, do sertão à pradaria. Traduziu e difundiu entre nós o pensamento de seus grandes amigos e parceiros intelectuais: Paul Zumthor e Henri Meschonnic. Foi uma professora generosa, como pude testemunhar, algumas vezes, em seu apartamento. Era prazeroso ver o brilho nos olhos daqueles jovens que se sentavam ao seu redor, ávidos por suas histórias. Jerusa era uma prosadora cheia de encantos!
Considero-me sua herdeira no curso de Editoração, da ECA-USP, onde ela lecionou por muitos anos. Não o digo por vaidade, mas pelo sentido de responsabilidade que essa consciência – ou desejo – em mim logo se despertou. Jerusa legou para o curso o compromisso com a formação humanística, sem regateios e economias. Um princípio que sobrevive e norteia a formação dos jovens editores egressos de nossa graduação. O respeito ao profissional do livro e a consciência de que um bom projeto editorial tem efeito multiplicador na sociedade, traduz-se, de forma concreta, na Coleção Editando o Editor, por ela criado e que subsiste até nossos dias. Com projeto editorial simples, porém, elegante, cada um desses volumes encerra a palavra de editores que, por seu empenho e por sua liberdade, deixaram suas marcas no mercado editorial brasileiro.
Circularidade e liberdade são palavras, enfim, que traduzem o espírito dessa grande intelectual. A sua vida e a sua escrita se nutriam dessa capacidade de ver e de sentir ao longe, muito longe. O seu mundo era vasto, generoso, descomplicado. Jerusa tinha voo de águia. Era um exemplo para todos nós.
Jerusa Pires Ferreira nos deixou em pleno domingo de Páscoa, em Salvador, no dia 21 de abril. Libertou-se de tudo. Guardo com saudade aquele sorriso largo, sincero, acolhedor. O sorriso de Jerusa. E guardo, também, com todo carinho, aquele batom que ela me deu. Obrigada, Jerusa.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Octávio Brandão e as Matrizes Intelectuais do Marxismo no Brasil - Lançamento


Octávio Brandão nasceu em 1896, na cidade de Viçosa, estado das Alagoas. Órfão de pai e mãe, foi criado pelo tio, fez os primeiros estudos em Maceió, diplomou-se pela Escola de Farmácia do Recife, abriu uma botica em sua terra natal e, ainda nesses tempos de formação, iniciou sua trajetória de militância no anarquismo, para logo ingressar no recém-fundado PCB (1922). Teve vida longa para os padrões e as condições de um homem de esquerda que dividiu boa parte de sua existência entre a clandestinidade e o exílio. Na URSS viajou muito e proferiu palestras sobre seu país. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1980, no ostracismo, como tantos outros militantes de sua geração que vivenciaram a débâclede um mundo cindido pela Guerra de 1939-1945, e os regimes ditatoriais no Brasil.
O livro de Felipe Lacerda não constitui propriamente uma biografia de Octávio Brandão, embora os traços do indivíduo e suas motivações pessoais tenham desempenhado um papel importante nessa composição. Tampouco se trata de um balanço historiográfico, que pretende confrontar as memórias de um militante com os escritos que sobre ele se fizeram. É verdade que nesse aspecto o autor assume, logo de partida, seu ponto de vista: inútil projetar exclusivamente sobre o indivíduo os possíveis erros, os silêncios e as inquietações que apenas o tempo pôde esclarecer para as gerações vindouras. Afinal, já ensinara Lucien Febvre em sua exemplar biografia de Martinho Lutero: “o estilo não é apenas o homem, mas toda a sua época”.
A escrita do livro não se deu sem percalços, tal foi a dificuldade que teve o autor de equacionar problemas tão delicados, cujas fronteiras estão longe de se definir: a primeira, já assinalada, diz respeito à relação entre o homem e o mundo, vale dizer, entre as aspirações individuais e aquilo que se convencionou chamar, não sem críticas, de “espírito do tempo”; além disso, como apreender no tecido intrincado de referências bibliográficas construídas, não raro de forma irrefletida, as matrizes intelectuais de um pensamento que se forma por camadas e em tempos sincrônicos ? Finalmente, em que medida o estudo das matrizes intelectuais de um militante pode dar conta do “estilo de toda uma época”?
Diante de problemas aparentemente insolúveis, sói recorrer às fontes, repisar terrenos já batidos por outros investigadores e, fundamentalmente, buscar com atenção aquilo que escapou aos olhos de boa parte da intelectualidade comunista. Felipe Lacerda nos convida a ler Canais e Lagoas, a investigar o programa do curso da Escola de Farmácia do Recife, a averiguar o que circulava pela imprensa, a observar os livros que passavam por entre essa gente simples, porém, intelectualizada. Era preciso, outrossim, prestar atenção às referências inscritas nos livros de memórias e, se possível, cotejá-las com os títulos e os autores gravados nos jornais e nas revistas do período. 
Assim os traços do indivíduo ganham corpo nesse jogo dialético que se estabelece entre as condições materiais da militância e as matrizes culturais do indivíduo. Os traços distintivos se apresentam em algumas passagens brilhantes, em que o autor analisa, por exemplo, a postura de Octávio Brandão frente aos dirigentes do Komintern ou de delegados estrangeiros. A própria estrutura do texto diz muito das escolhas e das leituras que inspiram esse livro: o primeiro capítulo se volta para a problemática das livrarias, editoras, instituições de leitura, enfim, da infraestrutura e dos circuitos editoriais voltados para a militância; em seguida, o autor investiga os caminhos e dos repertórios bibliográficos dos comunistas nos anos 20; apenas no último capítulo um amálgama de culturas e referências emerge como expressões ou “visões do Brasil”, para conformar aquilo que o autor assume como o “itinerário intelectual de Octávio Brandão”. 
Mas ocorre que, na década de 1920, Octávio Brandão não será apenas o estudioso interessado e o militante comprometido. No PCB ele se notabiliza como um intelectual de vanguarda, deve mobilizar a classe operária, comandar a agitprop. “Reconhecer o terreno e preparar as trincheiras por meio da ‘batalha das ideias’”, não é tarefa para o indivíduo, mas para o dirigente do Partido Comunista do Brasil. É nesse ponto que a relação logo estabelecida entre o todo e as partes ganha peso metodológico e a análise alça vôo próprio. 
Trocando em miúdos, Octávio Brandão e as matrizes intelectuais do marxismo no Brasil (1919-1929) se volta para o tempo concentrado das primeiras leituras e das primeiras ações de um grande homem, cujas aspirações se converteram nos projetos de um grupo de militantes e de leitores que inauguraram o primeiro partido comunista brasileiro. Parafraseando Febvre em suas reflexões sobre Lutero, temos aqui não uma melodia, mas uma bela composição polifônica.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Um Encontro sobre Bibliotecas e a Economia do Conhecimento


Biblioteca: armário de livros, lugar de leitura, espaço de sociabilidade

Desde o modelo mais antigo e paradigmático da Biblioteca de Alexandria, o caráter múltiplo e singular das bibliotecas se transferiu para cada nova instituição que se abria. É claro que se a tradição sobreveviveu, nem sempre esse modelo pode ser aplicado de modo integral. As bibliotecas monásticas, organizadas na Alta Idade Média, são um exemplo do peso da história sobre a dinâmica das instituições.
Mas a tradição foi guardada, nos subterrâneos, até que pudesse irromper para a superfície.
O colóquio que se organizará dentro de alguns dias na cidade de Sárospatak, na Hungria, apresenta-se como um exemplo eloquente dos usos que se pode fazer desse espaço nobre, destinado à guarda de livros, manuscritos, revistas e objetos vários que nos permitem aceder a essas múltiplas camadas da história dos homens e das culturas.
A história das bibliotecas calvinistas em território húngaro tem início após a derrota des Mohács, em 1526. O primeiro e mais importante colégio e biblioteca nasceu em Debrecen. Sua coleção, depositada em uma bela sala de arquitetura e décor bastante singular, soma mais de 500 mil volumes. Em Sárospatak encontramos o segundo conjunto mais importante. Sobre sua história, escreve Frédéric Barbier:
Sárospatak é uma cidade reformada, onde os antigos estudantes de Wittenberg são relativamente numerosos e onde um Colégio luterano (depois, calvinista) foi fundado em 1531, no antigo imóvel pertencente aos fransicanos. Ele se torna rapidamente renomado, e Comenius inicia, ali, em 1650, seus cursos. 
 A Biblioteca foi enriquecida com a coleção de György Rákóczi (1583-1648), príncipe da Transilvânia, além de outros fundos que lhe conferiram prestígio. Em 1672, após a instalação do Colégio dos Jesuítas, ocorre a diáspora da comunidade do antigo Colégio e a coleção bibliográfica se dispersa, até ser novamente reunida, mas sem o mesmo prestígio. É que nos tempos do Império Habsburgo o catolicismo se torna a religião do Estado, embora as minorias protestantes tenham sido preservadas.

Para ter acesso ao programa do colóquio:
https://drive.google.com/file/d/19XnCyJ-9IBrDEfFFmrR1tGKu3S3Xk3vK/view?usp=sharing