Plinio Martins Filho, 50 anos entre livros
Em fevereiro de 2021, Plinio Martins Filho celebrou 50 anos de profissão como editor. Meio século entre livros. Meio século de expertise e dedicação em editoras que desempenharam importantes papeis na produção do conhecimento e da cultura no Brasil: Perspectiva; Edusp e Ateliê Editorial.
Em homenagem ao nosso mestre e colega, o curso de Editoração tem a honra de iniciar seu ano letivo com a Aula Inaugural do "Editor Perfeito". O epítome nasceu de uma homenagem do grande escritor e crítico literário Prof. Alfredo Bosi (1936-2021).
Em 2016, quando Plinio Martins Filho finalizava seu Manual de Editoração e Estilo, obra clássica que lhe valeu o prêmio Jabuti (1o Lugar - Comunicação), tive a honra de redigir o prefácio ao livro.
Reproduzo abaixo o texto que abre o volume do Manual à guisa de homenagem.
* * *
Plinio Martins Filho, o Editor Perfeito
Um livro perfeitamente acabado contém uma boa doutrina, apresentada adequadamente pelo impressor e pelo revisor. É isso o que considero a alma do livro. Uma bela impressão sobre a prensa, limpa e cuidada, é o que faz com que eu possa compará-lo a um corpo gracioso e elegante.
Alonso Victor de Paredes, Institución y Origen del Arte de la Imprenta, c. 1680
A prática da edição é tão antiga quanto os primeiros volumes, ou livros em rolo. Timão (320 a.C.-230 a. C.), o filósofo cético, referia-se à Biblioteca de Alexandria como a “gaiola das musas”, onde uns “garatujadores” se punham a ler, copiar e comentar textos antigos. Conta o poeta de Fliunte que Zenódoto de Éfeso (333 a.C.-260 a.C.), o primeiro bibliotecário daquela instituição monumental, fundada na “populosa terra do Egito”, procedia a interpretações e intervenções de qualidade duvidosa ao copiar os textos da Ilíada e da Odisseia, o que colocava suas edições sob suspeita.
Nos tempos de Cícero (106 a.C.-43 a.C.) o ato de editar um texto adquire sentido mais amplo. São conhecidas as cartas que o grande orador, escritor e bibliófilo romano endereçou a Ático (109 a. C.- 32 a. C), o amigo abastado, de uma cultura helenista refinada, que não poupava recursos materiais e escravos – gregos, em sua maioria – para a edição e publicação de bons escritos. Ou seja, a arte da edição não se restringia mais ao estabelecimento de cópias dos registros antigos para a sua preservação nas bibliotecas. Tratava-se, agora, de tornar público um texto. Tal perspectiva explica o conteúdo semântico original do latim editor, editoris, ou seja, o que gera, o que produz, ou aquele que causa; e, por extensão, o autor, consoante o verbo edere, de parir, publicar, expor, produzir, segundo explicação de Emanuel Araújo. Há, na verdade, duas ações em jogo: enquanto edereequivale a lançar um produto literário sem procurar difundi-lo amplamente, publicare descreve o processo pelo qual o texto se torna público, ou seja, quando ele escapa ao poder do autor. Nos dois casos a função editorial é imprescindível, tanto no aspecto da crítica ao texto, tanto no que toca à cópia e à reprodução do original.
A revolução de Gutenberg intensificou ainda mais a oposição entre a escrita (= original) e o texto (= impresso), na medida em que a possibilidade de reprodução mecânica do livro exigiu novos níveis de profissionalização e de padronização. A publicação de textos eruditos se torna, então, uma atividade colegiada, com ampla participação de especialistas em diferentes fases de construção do livro, desde a seleção do manuscrito, donde a importância da filologia no alvorecer da Época Moderna, passando por decisões de ordem estética, ou seja, a escolha de tipos, a definição da quadratura da página e do formato do volume, até as intervenções de natureza editorial, ou seja, a inserção de paratextos, a hierarquização das informações e, claro, a revisão do exemplar impresso. Como escreve Alonso Victor de Paredes em sua preciosa Institución y Origen del Arte de la Imprenta, esse ancestral raro do Manual de Estilo e Editoração que Plinio Martins Filho prepara para editores, revisores e leitores brasileiros.
Nos tempos de Cícero (106 a.C.-43 a.C.) o ato de editar um texto adquire sentido mais amplo. São conhecidas as cartas que o grande orador, escritor e bibliófilo romano endereçou a Ático (109 a. C.- 32 a. C), o amigo abastado, de uma cultura helenista refinada, que não poupava recursos materiais e escravos – gregos, em sua maioria – para a edição e publicação de bons escritos. Ou seja, a arte da edição não se restringia mais ao estabelecimento de cópias dos registros antigos para a sua preservação nas bibliotecas. Tratava-se, agora, de tornar público um texto. Tal perspectiva explica o conteúdo semântico original do latim editor, editoris, ou seja, o que gera, o que produz, ou aquele que causa; e, por extensão, o autor, consoante o verbo edere, de parir, publicar, expor, produzir, segundo explicação de Emanuel Araújo. Há, na verdade, duas ações em jogo: enquanto edereequivale a lançar um produto literário sem procurar difundi-lo amplamente, publicare descreve o processo pelo qual o texto se torna público, ou seja, quando ele escapa ao poder do autor. Nos dois casos a função editorial é imprescindível, tanto no aspecto da crítica ao texto, tanto no que toca à cópia e à reprodução do original.
A revolução de Gutenberg intensificou ainda mais a oposição entre a escrita (= original) e o texto (= impresso), na medida em que a possibilidade de reprodução mecânica do livro exigiu novos níveis de profissionalização e de padronização. A publicação de textos eruditos se torna, então, uma atividade colegiada, com ampla participação de especialistas em diferentes fases de construção do livro, desde a seleção do manuscrito, donde a importância da filologia no alvorecer da Época Moderna, passando por decisões de ordem estética, ou seja, a escolha de tipos, a definição da quadratura da página e do formato do volume, até as intervenções de natureza editorial, ou seja, a inserção de paratextos, a hierarquização das informações e, claro, a revisão do exemplar impresso. Como escreve Alonso Victor de Paredes em sua preciosa Institución y Origen del Arte de la Imprenta, esse ancestral raro do Manual de Estilo e Editoração que Plinio Martins Filho prepara para editores, revisores e leitores brasileiros.
A Perfeição está no Equilíbrio entre a Beleza e o Conteúdo
Nesse sentido, parece correto afirmar que os editores são os verdadeiros guardiões de uma longa linhagem de leitores benfazejos que zelam pela preservação e publicação dos textos. Pode-se mesmo dizer que o editor sobreviveu a todas as revoluções que incidiram sobre a cultura escrita: a passagem do roloao códice, no primeiro século da era cristã; a invenção da imprensa, em meados do século XV; e a emergência do texto digital, a qual permite, nos dias atuais, a leitura em diferentes suportes ou plataformas.
É claro que essa revolução afetou ou multiplicou as modalidades de leituras. Há o leitor concentrado, o leitor interativo, o leitor crítico, o leitor intensivo, o leitor solidário, o leitor malcomportado... e, coisa do novo milênio, há também o leitor eletrônico. O e-readerdos anglo-saxões ou a liseuse, batizada, assim, à moda francesa, com o gênero feminino bem demarcado. Mas existe um tipo de leitor que fica escondido atrás do livro e que vê tudo o que os outros leitores não podem ver. É um leitor exigente, do tipo tinhoso, que não dorme no ponto, não salta as linhas – quiçá, as páginas! – e que deixa a casa sempre em ordem para o desfrute dos outros leitores. Esse leitor benfazejo é o editor.
Pois se houve ou ainda há alguma dúvida quanto à sobrevivência do códice diante de uma revolução midiática em curso, não parece ter ocorrido a ninguém questionar o papel central que desempenha o editor no processo de construção do texto. No limite, é possível pensar que as novas tecnologias concorram para uma maior articulação entre as funções do autor e do editor, o que tornaria os escritores, como já ocorreu noutras épocas, editores de seus próprios escritos. Isso porque entre a escrita e o texto há muitos (des)caminhosa percorrer.
Escritores tecem como aranhas as palavras, enquanto os editores redesenham, fio a fio, o tecido de símbolos a que chamamos texto. É trabalho de artesão, dos mais refinados. Plinio Martins Filho é desses editores que dominam o ofício, a arte da construção do livro, com suas regras não raro estritas de equilíbrio entre a forma e o conteúdo. Para tanto, ele sabe que é preciso conhecer intimamente o objeto, seus aspectos formais e as hierarquias que ordenam os conteúdos, os quais, ao final de tudo, vão compor o livro. Noutros termos, a passagem do original em texto impresso. Mas nada disso teria sentido se não o houvesse o cuidado com a forma. Investe-se, então, nas tramas menores: nos detalhes tipográficos, na conformação das letras e no uso dos sinais diacríticos. Nada escapa ao editor. Tecer é normalizar, domar a escrita, forçar uma coerência entre as partes e o todo, e estabelecer o diálogo entre a ideia e o símbolo. Como sói dizer: editar é ordenar o caos.
É claro que essa revolução afetou ou multiplicou as modalidades de leituras. Há o leitor concentrado, o leitor interativo, o leitor crítico, o leitor intensivo, o leitor solidário, o leitor malcomportado... e, coisa do novo milênio, há também o leitor eletrônico. O e-readerdos anglo-saxões ou a liseuse, batizada, assim, à moda francesa, com o gênero feminino bem demarcado. Mas existe um tipo de leitor que fica escondido atrás do livro e que vê tudo o que os outros leitores não podem ver. É um leitor exigente, do tipo tinhoso, que não dorme no ponto, não salta as linhas – quiçá, as páginas! – e que deixa a casa sempre em ordem para o desfrute dos outros leitores. Esse leitor benfazejo é o editor.
Pois se houve ou ainda há alguma dúvida quanto à sobrevivência do códice diante de uma revolução midiática em curso, não parece ter ocorrido a ninguém questionar o papel central que desempenha o editor no processo de construção do texto. No limite, é possível pensar que as novas tecnologias concorram para uma maior articulação entre as funções do autor e do editor, o que tornaria os escritores, como já ocorreu noutras épocas, editores de seus próprios escritos. Isso porque entre a escrita e o texto há muitos (des)caminhosa percorrer.
Escritores tecem como aranhas as palavras, enquanto os editores redesenham, fio a fio, o tecido de símbolos a que chamamos texto. É trabalho de artesão, dos mais refinados. Plinio Martins Filho é desses editores que dominam o ofício, a arte da construção do livro, com suas regras não raro estritas de equilíbrio entre a forma e o conteúdo. Para tanto, ele sabe que é preciso conhecer intimamente o objeto, seus aspectos formais e as hierarquias que ordenam os conteúdos, os quais, ao final de tudo, vão compor o livro. Noutros termos, a passagem do original em texto impresso. Mas nada disso teria sentido se não o houvesse o cuidado com a forma. Investe-se, então, nas tramas menores: nos detalhes tipográficos, na conformação das letras e no uso dos sinais diacríticos. Nada escapa ao editor. Tecer é normalizar, domar a escrita, forçar uma coerência entre as partes e o todo, e estabelecer o diálogo entre a ideia e o símbolo. Como sói dizer: editar é ordenar o caos.
Escrever na Areia
A imagem do editor perfeito nasceu da convivência estreita de Plinio Martins Filho com seus autores. Na verdade, quem a cunhou não foi seu autor direto, mas desses autores que orbitam no círculo universitário. Alfredo Bosi o escreveu, a título de dedicatória em um livro seu, publicado pela Editora 34. A escrita criou a imagem e foi condensando no imaginário das gentes essa figura rara, dedicada ao livro. E se o que é perfeito vem das mãos de Deus, como ele também gosta de dizer, pode-se mesmo assumir que há algo de sagrado no ofício do editor. Nesse trabalho aturado e rotineiro que, no final de tudo, torna-se invisível aos olhos de autores e leitores.
Mas Plinio não se queixa. Seu ofício é sagrado, valeu-lhe uma vida, toda uma história de superação. Nascido em Pium, nos campos do Goiás, hoje pertencente a Tocantins, a relação de nosso editor com a escrita demorou a se revelar. Apareceu, antes, em sonhos e sob a forma luminosa do ato de escrever na areia, praticado pelo pai. Naqueles tempos distantes, em terras longínquas a escrita era uma revelação fugidia. Ela apenas se materializa na escola. Nessas mesmas escolas que ainda hoje são perseguidas por crianças persistentes, que enfrentam longos caminhos, não raro a fome, as injustiças, mas nunca a desesperança. Até que o filho do Brasil profundo encontra na grande cidade, São Paulo, a figura de um editor notável, a um só tempo acolhedor e rigoroso.
A relação de Plinio Martins Filho se inicia, de fato, na Editora Perspectiva, há mais de quarenta anos. Ali nosso editor foi subindo os degraus de um velho edifício. Da seção de estoque, passou para a mesa de revisão e preparação. Aprendeu tudo em silêncio, com calma, como sói fazer. Virou páginas, torceu letras e, quando deu por si, fazia o livro inteiro. Dominava o métier. A Edusp acolheu o homem pronto, pobre que era na arte de fazer livros. Também, ali, na lentidão e no silêncio dos dias, uma velha editora ganhava novas roupagens. Ela se modernizava com a universidade. Foram vinte e cinco anos de dedicação reconhecida e agradecida pela maioria dos seus pares.
Por tudo isso o editor é aquele leitor benfazejo, que teima em ver na filigrana o que ninguém se dá por conta. Plinio Martins Filho não é o tipo de escritor prolixo. Portanto, não teime e buscar seu nome nas fileiras dos autores brasileiros. Mas seu nome figura nas fileiras dos grandes editores brasileiros do passado. Pois no presente ele é único. No entanto, Plinio se prepara para ser o autor de um grande livro, inédito no Brasil. Trata-se de seu Manual de Editoração e Estilo, volume que já nasce clássico, no qual o editor revela seus segredos, tudo o que aprendeu e executou, silencioso, no fio do tempo. Sem dúvida, passagem obrigatória para todos os tipos de leitores que encontram no livro a melhor morada para se viver.
Mas Plinio não se queixa. Seu ofício é sagrado, valeu-lhe uma vida, toda uma história de superação. Nascido em Pium, nos campos do Goiás, hoje pertencente a Tocantins, a relação de nosso editor com a escrita demorou a se revelar. Apareceu, antes, em sonhos e sob a forma luminosa do ato de escrever na areia, praticado pelo pai. Naqueles tempos distantes, em terras longínquas a escrita era uma revelação fugidia. Ela apenas se materializa na escola. Nessas mesmas escolas que ainda hoje são perseguidas por crianças persistentes, que enfrentam longos caminhos, não raro a fome, as injustiças, mas nunca a desesperança. Até que o filho do Brasil profundo encontra na grande cidade, São Paulo, a figura de um editor notável, a um só tempo acolhedor e rigoroso.
A relação de Plinio Martins Filho se inicia, de fato, na Editora Perspectiva, há mais de quarenta anos. Ali nosso editor foi subindo os degraus de um velho edifício. Da seção de estoque, passou para a mesa de revisão e preparação. Aprendeu tudo em silêncio, com calma, como sói fazer. Virou páginas, torceu letras e, quando deu por si, fazia o livro inteiro. Dominava o métier. A Edusp acolheu o homem pronto, pobre que era na arte de fazer livros. Também, ali, na lentidão e no silêncio dos dias, uma velha editora ganhava novas roupagens. Ela se modernizava com a universidade. Foram vinte e cinco anos de dedicação reconhecida e agradecida pela maioria dos seus pares.
Por tudo isso o editor é aquele leitor benfazejo, que teima em ver na filigrana o que ninguém se dá por conta. Plinio Martins Filho não é o tipo de escritor prolixo. Portanto, não teime e buscar seu nome nas fileiras dos autores brasileiros. Mas seu nome figura nas fileiras dos grandes editores brasileiros do passado. Pois no presente ele é único. No entanto, Plinio se prepara para ser o autor de um grande livro, inédito no Brasil. Trata-se de seu Manual de Editoração e Estilo, volume que já nasce clássico, no qual o editor revela seus segredos, tudo o que aprendeu e executou, silencioso, no fio do tempo. Sem dúvida, passagem obrigatória para todos os tipos de leitores que encontram no livro a melhor morada para se viver.
Que maravilha !!!! Agendado. Espero que fique gravado para que os alunes da Produção Editorial - UFSM possam assistir, as aulas aqui iniciam em maio. Vou divulgar. Parabéns, desde já, pela iniciativa.
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