Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Sobre Livros - Códices Mesoamericanos


As Civilizações do Livro

Códices – Os antigos livros do Novo Mundo, de Miguel Léon Portilla, historiador e antropólogo mexicano, finalmente vertido para o português [Ed. UFSC, 2012], nos permite vislumbrar os principais livros mesoamericanos que antecederam à época das descobertas.


Um naco de pão e uma carta, era esta a encomenda que um missionário confiara a seu fiel aprendiz. O caminho era longo e, a certa altura, o jovem indígena comeu todo o pão e guardou a carta, a qual foi entregue, intacta, ao destinatário. Este a leu e perguntou ao jovem incauto pelo pão. A carta certamente mentia, respondeu o jovem, pois ele nada mais tinha a lhe entregar. O fato se repetiu. Mas, desta vez, o jovem indígena tomou certa cautela. Escondeu a carta atrás de uma pedra antes de comer o pão. Novamente, o missionário lhe perguntou o que havia acontecido, pois a missiva dava a notícia de que um pão lhe havia sido confiado. A carta certamente mentia, respondeu o jovem. Ele de fato comera o pão, mas a carta não o viu, pois ele tomara o cuidado de a esconder atrás de uma pedra.
A história se passa no século XVI e narra o primeiro contato de um jovem índio da Baixa Califórnia com a escrita. Mergulhado como estava no mundo da oralidade, o jovem não poderia ver naquela carta, na escrita, senão um ser animado e misterioso. Que até mentia!
A descoberta do Novo Mundo constitui um fato novíssimo na história das civilizações. Um marco na história moderna, já o sabemos. Uma primeira mundialização, dizem alguns historiadores, cujos reflexos nos campos da ciência, da política, da religião e da cultura ainda nos surpreendem. Conhecimentos novos que se converteram em livros, sob a forma de relatos de viagens, correspondências, mapas, estudos astronômicos, enfim, uma fortuna bibliográfica de valor inestimável a perder de vista nas principais bibliotecas de todo o mundo. Afinal, a invenção de Gutenberg tornara possível difundir a grande novidade por todas as partes do velho continente.
Mas o que sabemos sobre o contato dos povos americanos com os livros?
Códices – Os antigos livros do Novo Mundo, de Miguel Léon Portilla, historiador e antropólogo mexicano, finalmente vertido para o português [Ed. UFSC, 2012], nos permite vislumbrar os principais livros mesoamericanos que antecederam à época das descobertas. É bem verdade que esses exemplares não reproduzem de maneira rigorosa a forma-livro tal como ela se consolidara, há séculos, no Ocidente europeu. Pouco importa. Afinal, também a Europa conviveu com os livros-sanfona e os antiquíssimos rolos cujo uso se demorava no Oriente.
Replica do Codex Fejervary-Mayer, Liverpool Free Public Museums 
Interessa observar que as civilizações mesoamericanas conheceram diferentes níveis de contato com a escrita. Uma longa história que vai do jovem ingênuo que via no livro um ser animado – e mentiroso – ao altivo imperador inca Atahualpa, que negou a autoridade da Bíblia diante de um mensageiro de Pizarro, pois esta apenas lhe respondia com um longo silêncio às questões que ele lhe foram propostas. O que nos faz refletir sobre os encontros e desencontros dos povos da América com a escrita. E com o livro. Uma última história. Conta-se que um certo nahua-pipil, procedente de uma região que hoje equivaleria ao Pananá, notou nas mãos de um missionário um livro. Surpreso com a descoberta, perguntou-lhe simplesmente se os homens de seu mundo tinham o hábito de ler livros. O missionário não menos atônito respondeu que, sim, que ele vinha de um mundo onde as pessoas conheciam os livros. Sem muita cerimônia o indígena tomou-lhe o livro e se pôs a examiná-lo. Ocorre que se o objeto lhe era bastante familiar, a escrita lhe pareceu estranha. Não menos altivo que o imperador inca, porém, certamente mais curioso do que aquele, ele se pôs numa longa e acurada palestra com o missionário, permitindo-se comentar a escrita do outro e certos aspectos daquela estranha civilização, cujas notícias sobre os modos de viver chegavam até ele. Naquele momento, civilizações tão diferentes, enfim, se encontraram. E não era menos certo de que o conhecimento do mundo pelos livros fixara um laço entre os dois convivas. Dois personagens, enfim, dolorosamente ligados pelos muitos desencontros que os livros registraram neste importante capítulo da história das civilizações.
Artigo publicado em versão impressa na Revista Brasileiros, março/2013.

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