Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Chico Buarque e sua Casa de Papel

Quem ziguezagueia pela casa de papel imaginada por Chico, desvenda pouco a pouco uma cartografia algo imodesta da literatura universal.



As paredes forradas de livros não abafam o toque toque da máquina de escrever. No escritório o silêncio é rompido de quando em vez por uma voz masculina. Mas não há diálogo, apenas alguns pedidos de títulos que a mãe não se demora a atender, como bibliotecária prestimosa e boa conhecedora – talvez a única? - daquele labirinto de corredores e de fileiras de livros que conformam as vigas mestras da casa.
Quem ziguezagueia pela casa de papel imaginada por Chico, desvenda pouco a pouco uma cartografia algo imodesta da literatura universal. No quarto do irmão mais velho, os livros de linguística, de arqueologia, além da mapoteca, dos espanhóis e dos chineses. Para o mais novo, descansam nos umbrais do cômodo os escandinavos, a Biblia, a Torá, o Corão e “metros e metros de dicionários e enciclopédias”. O homem feito que vagueia pela casa ainda sente roçar as espinhas contra o dorso dos volumes e as bochechas a se esfregar, pele contra pele, no couro do Vieira. Uma ligação sensual que se construiu, enfim, desde as primeiras descobertas do olfato, do tato, do gosto e do olhar. Pequenos prazeres que se consumam, inesperadamente, no gosto “erótico em separar dois livros apertados, com o anular e o indicador, para forçar a entrada de O Ramo de Ouro na fresta que lhe cabe”.
Na casa de papel são resguardados os vestígios de vários tempos. Do tempo dos livros, como aqueles volumes renascentistas que o pai ostentava na estante principal, da sala de estar. Do tempo do menino consumido pela ira, que reduziu um Staden original a tiras de papel. Dos tempos de formação, que levaram aquele mesmo antigo menino e exibir na escola e, mais tarde, pelos corredores do Maria Antônia edições raras, com autógrafos e dedicatórias que remetiam ao pai onipresente.
Também na casa de papel são revelados os primeiros vestígios de um tempo circular, no qual pai e filho se veem dolorosamente ligados a um segredo do passado. Assim os primeiros traços de um irmão perdido no tempo se anunciam nas maus traçadas linhas de uma carta esquecida no volume empoeirado do Ramo de Ouro, este clássico de James George Frazer, que o pai certamente trouxera de Berlim. Assim o irmão alemão de Chico Buarque vai se revelando em meio a um sistema literário sofisticado, que sobrevive às intempéries da História, daqui e de além-mar. Como contraste às relações movediças que demarcam as experiências na cidade e, por certo, como contraponto à violência assistida nas próprias cidades, sobrevive na casa de papel a ordem dos livros. A ordem da memória. Da memória da casa do pai, este personagem invisível e onisciente. Um dos "Sérgios" a quem Chico Buarque dedica O Irmão Alemão, seu mais novo romance.

TODAS AS QUARTAS, UMA NOVA POSTAGEM!

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