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Tanto o barqueiro quanto o jardineiro aludem a algo que preexiste: um jardim ou um viajante a ser transportado. Todo escritor possui em si mesmo um jardim a ser cultivado e um viajante a ser transportado (p. 134).
A imagem, o autor a rouba de Dimitrijevic, editor de origem eslava que emigrou para Lausanne e com quem compartilhou boas conversas nas feiras de Frankfurt.
Esta é apenas uma dentre as belas descrições de Roberto Calasso em A Marca do Editor. Esta edição elegante e coroada por uma escrita magnética, que acaba de ser publicada no Brasil, nos conduz a pensar que todo o livro é um exercício de écfrase, destinado a recuperar a beleza e o estilo da arte editorial.
O livro único
Na Adelphi elaborou – sempre dentro da perspectiva de uma teoria da edição – o conceito do livro único, para o qual não existe apenas uma chave interpretativa, mas alguns caminhos de definição vivenciados na prática:
a edição crítica de Nietzsche, que era suficiente para nortear todo o resto; e uma coleção de clássico estruturada em critérios bastante ambiciosos: fazer bem o que antes se fizera com negligência (p. 11).
O livro essencial
No que toca à cultura emergente da informação acima de tudo e a qualquer custo, Calasso é inflexível e em suas palavras transborda o fino fel da ironia. A promessa de uma biblioteca digital de acesso amplo e irrestrito, soa-lhe tão ameaçadora quanto a substituição dos livros impressos pore-readers.A questão é que a digitalização universal implica uma hostilidade contra um modo de conhecimento – e apenas em segundo momento para o objeto que o encarna: o livro (p. 43).Os elementos que corroboram sua análise podem ser tirados de experiências hodiernas, vivenciadas nas universidades brasileiras, a começar pelo processo de desqualificação dos livros capitaneado pelos gestores da Capes, com a anuência, vale frisar, da comunidade acadêmica, na última década. Quando seus êmulos mais habituados às famigeradas revistas científicas – cujo principal poder consiste em tornar obsoletas as descobertas publicadas no número da véspera – se tornaram os primeiros cavaleiros do apocalipse da cultura entediante e modorrenta dos livros, não houve surpresas. Espanto maior foi a reação dos autodenominados humanistas, no sentido de rebaixar, também eles, as publicações em livros. E como se esses fatos já não parecessem suficientemente extraordinários, surgem os apóstolos de uma nova era, em que livros se tornam objetos de luxo. Ou, no extremo oposto, quando são relegados à condição de coadjuvantes de uma cultura digital pretensamente superior e mais democrática, ou a de meros instrumentos de apoio à atividade didática, tão arcaicos quanto a velha lousa e o giz. Aliás, um quadro muito familiar à distopia de Ray Bradbury, fazendo-nos crer, como observa o autor, que “nesse caso o mundo poderia até desaparecer, pois seria supérfluo” (p. 51).
Do início ao fim as palavras de Roberto Calasso esbanjam nobreza. Movida pelo conhecimento e pela fé – esta, entendida à luz dos videntes védicos, como “uma confiança nos gestos rituais”, em um exercício mental contínuo – a figura do editor se impregna dessa aura de discernimento e de juízo que se inscreve em uma longa tradição cultural. No seu entender, desde o Humanismo impresso em papel e tinta por Aldo Manuzio.