Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Ênio Silveira: inovação e revolução editorial

Lembrar Ênio Silveira (1925-1996)

O Editor na Galeria dos Presidentes do Sindicato Nacional dos Editores e Livreiros


O paulista Ênio Silveira iniciou sua trajetória no mundo dos livros pelas mãos de Monteiro Lobato. O primeiro encontro já diz muito sobre a personalidade desses dois quixotes da edição brasileira. A apresentação foi mediada por uma amiga em comum, a senhora Leonor Aguiar:

Quando cheguei - naquela época era possível fazer isso ainda - a porta não estava fechada à chave, estava entreaberta e havia um cartão zinho: "Ênio, ao chegar entre e feche a porta por dentro". E eu entrei e chamei por Leonor. Ela respondeu:
_ Estou aqui no banheiro, veha ao banheiro.
...
Bom, ao entrar comecei a ouvir ruídos estranhos; antes de chegar ao banheiro ouvi um barulho que parecia de água... Era o Monteiro Lobato que estava na banheira! Eu não sabia onde meter a cara. Aí, o Lobato olhou para mim, com aquelas sombrancelhas espessas que ele tinha, com um ar de profundo deleite, pois Leonor o esfregava vigorosamente com um esfregão e disse:
_ Ué, você nunca viu um homem nu, oh menino?
Capa de Eugênio Hirsch
Após o encontro, Ênio Silveira será encaminhado para a Companhia Editora Nacional. Torna-se, então, empregado de Octalles Marcondes Ferreira, de quem se tornará genro. Ênio segue para os Estados Unidos, vindo a estudar na Universidade de Columbia, onde estreita contato com autores de esquerda norte-americanos. No Brasil mantém relações com grandes intelectuais, do porte de Fernando de Azevedo.
Pulamos para o final da década de 1950, com o editor instalado no Rio de Janeiro e chefe absoluto da editora Civilização Brasileira, antes, apenas um selo da CEN.
A década foi promissora para o mercado editorial brasileiro e Ênio tira proveito dos bons ventos para lançar o que havia de mais fresco e provocador nas áreas de Literatura e Ciências Humanas.
Foi o editor de Vladimir Nabokov, no Brasil. A capa de Lolita, desenhada por Eugenio Hirsch causou verdadeiro impacto entre os leitores brasileiros. O próprio Nabokov viria a dizer que foi a melhor capa criada para seu livro em todo o mundo!
O Golpe Militar representou para Ênio uma viradeira do ponto de vista da ação e da responsabilidade política do editor. E isto se refletiu no seu catálogo, não sem um alto custo para ele. É o que conta em uma entrevista:
Eu publiquei muitas dessas obras – do Golpe no Brasil, dos erros do Golpe, do Carpeaux e de outros, e esses eles [a polícia] apreendiam logo. Mas com as obras de Lênin, eu pensava, seria diferente, ele era um líder político, uma figura histórica, e provavelmente passaria – eu tenho visto estas coisas. Eles não apreenderam Marx. Pensei, se não apreenderam Marx, não apreenderam Engels, que lancei também, vou lançar o Lênin, que é um brilhante pensador. Tenho muito respeito intelectual por Lênin, ele era um homem de ação política e um intelectual.
O Editor se enganou e teve todo o trabalho perdido...
Ênio Silveira também investiu em trabalhos destinados aos setores populares, como a coleção Cadernos do Povo Brasileiro, com projeto de capa também de Hirsch. Contando com o apoio intelectual de Álvaro Vieira Pinto e de Nelson Werneck Sodré, transformou-se em verdadeiro fenômeno de vendas, com tiragens de até 20 mil exemplares e reedições que atingiram a cifra recorde de 100 mil exemplares. Números ainda mais significativos se considerarmos o dinamismo do mercado editorial nos anos que precederam ao Golpe e a taxa de analfabetismo em 1960, que abrangia 37,9% de um total de 70.191.370 habitantes. A distribuição ficava a cargo do Centro Popular de Cultura (CPCs) da União Nacional de Estudantes, pelo menos entre o público mais distante dos centros urbanos, onde praticamente inexistiam pontos de venda de livros e de impressos em geral. Os títulos, como aponta Angelica Lovatto, não deixam dúvidas sobre o teor das leituras e o espírito mobilizador que se imprimia aos livros:
1. Francisco Julião (1962). Que são as Ligas Camponesas?
2. Nelson Werneck Sodré (1962). Quem é o povo no Brasil?
3. Osny Duarte Pereira (1962). Quem faz as leis no Brasil?
4. Álvaro Vieira Pinto (1962). Por que os ricos não fazem greve?
5. Wanderley Guilherme (1962). Quem dará o golpe no Brasil?
6. Theotônio Júnior (1962). Quais são os inimigos do povo?
7. Bolívar Costa (1962). Quem pode fazer a revolução no Brasil?
8. Nestor de Holanda (1963). Como seria o Brasil socialista?
9. Franklin de Oliveira (1963). Que é a revolução brasileira?
10. Paulo R. Schilling (1963). O que é reforma agrária?
11. Maria Augusta Tibiriçá Miranda (1963). Vamos nacionalizar a indústria farmacêutica?
12. Sylvio Monteiro (1963). Como atua o imperialismo ianque?
13. Jorge Miglioli (1963). Como são feitas as greves no Brasil?
14. Helga Hoffmann (1963). Como planejar nosso desenvolvimento?
15. Aloísio Guerra (1963). A Igreja está com o povo?
16. Aguinaldo Nepomuceno Marques (1963). De que morre o nosso povo?
17. Eduard Bailby (1963). Que é o imperialismo?
18. Sérgio Guerra Duarte (1963). Por que existem analfabetos no Brasil?
19. João Pinheiro (1963). Salário é causa de inflação?
20. Plínio de Abreu Ramos (1963). Como agem os grupos de pressão?
21. Vamireh Chacon (1963). Qual a política externa conveniente ao Brasil?
22. Virgínio Santa Rosa (1963) Que foi o tenentismo?
23. Osny Duarte Pereira (1964). Que é a Constituição?
24. Barbosa Lima Sobrinho (1963). Desde quando somos nacionalistas?
Títulos extras:
Franklin Oliveira (1962). Revolução e contra-revolução no Brasil
Vários autores (1962). Violão de rua – poemas para a liberdade. Volume I
Vários autores (1962). Violão de rua – poemas para a liberdade. Volume II
Vários autores (1963). Violão de rua – poemas para a liberdade. Volume III
A persistência de Ênio no campo da edição expôs seu nome e o da editora aos agentes de segurança do regime militar. Foram muitos os golpes intimidadores que atingiram a Civilização Brasileira e seu editor. Prisões, buscas, apreensões, cortes de crédito na praça, dificuldades de importação de papel, perda de clientes... até o atentado à bomba em 1968 contra a livraria, em plena rua Sete de Setembro, no Rio de Janeiro, às duas da manhã. Era o começo do fim. O projeto editorial soçobrou, embora o editor tenha se mantido até 1982, quando passou o selo para o grupo Difel.
Mas o lema da Civilização Brasileira deve persistir entre nós:
Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê.
Bibliografia consultada: Mélanie Mondl von Metzen, Arte e Poética nas Capas de Eugênio Hirsch, TCC, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2013; Andréa Lemos Xavier Galucio, Civilização Brasileira e Brasiliense: Trajetórias Editoriais, Empresários e Militância Política, Tese de Doutoramento, Rio de Janeiro, UFF, 2009; Ênio Silveira. Edição dirigida por Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: ComArte; Edusp, 2003, (Coleção Editando o Editor, 3); Maria Luiza Tucci Carneiro, Livros proibidos, ideias malditas. São Paulo, Ateliê Editorial, 2002; Laurence Hallewell, O livro no Brasil. São Paulo, Edusp, 2005; Angelica Lovatto, “Um projeto de revolução brasileira no pré-1964: os Cadernos do Povo Brasileiro”, In: Edição e Revolução. Brasil e França. Cotia: Ateliê Editorial; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.

Um comentário:

  1. Olá Marisa, adoro ler seus textos porque quase todas as obras que você cita já tive contato aqui na biblioteca do Carone! Esse é o caso da coleção Cadernos do Povo Brasileiro. Estou agora imerso na coleção de folhetos do Carone! Abraços, José Renato

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