Tradição
Conta-se que logo após a impressão das primeiras Bíblias, no então desconhecido ateliê tipográfico de Johannes Gutenberg, situado na pequena Mogúncia (atual Mainz), seu sócio e financista Johan Fust correu para Paris com uma dúzia de exemplares, afim de converter em dinheiro os livros recém-impressos. No velho Quartier Latin, onde pulsava uma vida universitária e a economia do livro manuscrito medrava, a desconfiança foi enorme. Um homem germânico de posse de uma dúzia de Bíblias idênticas? Isso só poderia ser coisa do demônio! Não demorou Fust passar por Faust... e fugir de Paris. Um quarto de século mais tarde, a mesma Paris dos mestres copistas, encadernadores, livreiros e pergaminheiros, viria a ser um dos principais centros tipográficos da Europa.
Não há inovação que se imponha sem desconfianças e resistências.
A Bíblia de Gutenberg, a famosa Bíblia de 42 linhas – o fac-símile acaba de ser publicado pela editora Taschen, sob a direção de Stephen Füssel – consiste em um testemunho material eloquente dos meios e do esforço aplicado por seu criador para que aquele livro, detentor de uma revolução sem precedentes, reproduzisse, sem maiores alardes, as Bíblias manuscritas então em voga. É que a inovação técnica, para Gutenberg, não teria valor se não correspondesse à tradição, ao gosto dos leitores.
Todavia, a invenção da imprensa significou “a primeira revolução midiática” do Ocidente, ao abalar toda a estrutura do sistema de comunicação e da própria sociedade, em meados do século XV, como afirma Frédéric Barbier[1], em estudo recém-publicado no Brasil. De modo análogo, uma nova revolução no sistema de comunicação se anuncia, há pelos menos duas décadas. Passado e presente nos convidam a refletir sobre o impacto das tecnologias de informação e comunicação sobre o livro.
Revolução/Inovação
A maior invenção do novo milênio aparece sob a forma do livro digital, ou e-book. Os suportes eletrônicos apresentam muitas qualidades em relação aos livros: em um mesmo objeto podemos armazenar bibliotecas tão extensas que não poderão ser lidas no espaço de uma vida; eles são leves e portáteis, tanto quanto os celulares, os quais, na verdade, têm se mostrado muito mais úteis, até para a leitura; a tela é iluminada, o que permite ler em qualquer ambiente. Entre essas e muitas outras vantagens, vale dizer que o livro eletrônico não se desprendeu do livro tradicional no que toca às formas de leitura. Ele simula o barulho da folha, reconstitui a composição da página e a estrutura do texto impresso. Talvez porque a tradição, no caso das práticas de leitura, seja mais resistente a mudanças do que a própria concepção do objeto. Cumpre assinalar, inclusive, que o e-bookpoderia ter outro nome qualquer, não fosse a força da palavra-ideia livro.
Esses suportes têm sido alvos de tantas comparações que, hoje em dia, é difícil tomar um partido seguro. Livros eletrônicos e textos digitais compõem a vida de leitores e leitoras de diferentes gerações, tão naturalmente quanto os livros e os textos impressos. Mas seria um erro afirmar que texto e livro se confundem. Os textos são inerentes aos suportes, poder-se-ia mesmo admitir que os suportes compõem textualidades, de tal forma que o continente não se aparta do conteúdo. E todos esses elementos se integram e interagem em um mesmo sistema midiático.
Tradição/ Revolução
Notemos que da mesma maneira que Gutenberg se esforçou para guardar no livro impresso os componentes de uma tradição manuscrita, também as novas tecnologias se esforçam para preservar o que há de melhor na tradição impressa. As tecnologias tornaram até mesmo possível o acesso ilimitado e sem fronteiras aos livros depositados nas bibliotecas do mundo!
Então, por que ferir a tradição e forçar o tempo?
Desde o século XV, a inovação que representou o livro impresso se ancorou nas sociedades desenvolvidas, para então se difundir na direção das semiperiferias e periferias em escala mundial. O movimento é lento, sobretudo quando se trata de atingir diferentes camadas leitoras de uma dada sociedade. Leitores se apoiam na tradição, pois as próprias instituições formadoras – desde as escolas primárias até as próprias bibliotecas – são resistentes às transformações. É preciso respeitar o tempo e as tradições de cada cultura.
O próprio mercado sinaliza essa realidade: os livros impressos superam em produção e vendas os e-books. Porém, em alguns circuitos não faz sentido insistir nos velhos e ultrapassados códices, particularmente nos setores universitários, cujas pesquisas, fortemente associadas às demandas da indústria e do consumo de tecnologias, consistem justamente em forçar o tempo e desafiar a tradição.
Diante de realidades às vezes discrepantes, o que fazer? Impor uma mídia sobre a outra? Fechar as livrarias, exigir das editoras um compromisso maior com os livros eletrônicos, alterar o tempo de aprendizado dos leitores, obrigar toda uma sociedade a ler afórceps?
Um outro paralelo pode ser útil. Sabe-se que durante a Revolução Francesa as bibliotecas principescas e religiosas foram saqueadas, pois elas simbolizavam um passado e um regime que deveriam ser superados. O que foi feito dos livros? Eles foram acomodados em modernas bibliotecas públicas, mantidas pelos municípios. Mutatis mutandis, podemos dizer que no processo revolucionário, o caminho mais sábio é aquele que tira partido da tradição em proveito do desenvolvimento e do progresso.
É preciso converter a tecnologia para o bem da cultura. Livros impressos são ainda necessários, tanto quanto as livrarias e toda a cadeia produtiva que ele movimenta. Os livros impressos disponibilizam materialmente um mundo ainda pouco desbravado pelos jovens leitores brasileiros, muitos deles ingressantes nas universidades. E isso não se faz em detrimento das mídias eletrônicas e dos novos suportes, elas conformam hoje um circuito paralelo e igualmente rentável.
Além disso, sabemos que o sucesso da inovação no campo da leitura só é possível sobre um terreno bem cimentado de leitores. Noutros termos, não há inovação que se imponha sem uma tradição bem fundada.
Publicado em: https://jornal.usp.br/artigos/livro-tradicao-inovacao/
Publicado em: https://jornal.usp.br/artigos/livro-tradicao-inovacao/
[1] Frédéric Barbier, A Europa de Gutenberg. O Livro e a Invenção da Modernidade Ocidental (Séculos XIII-XVI). São Paulo: Edusp, 2018.
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