Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

sábado, 12 de maio de 2018

O Título de um Livro, de Lincoln Secco

Lincoln Secco me enviou esse belo artigo e pediu que eu publicasse em nosso blog.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/24/politica/1516815938_008656.html
O tempo anoitece as leituras. Aos dezessete anos eu estava entre perdido e apaixonado nas manhãs da USP. Eram tempos de cursar as letras, ler a Crestomatia Arcaica com as canções medievais, estudar a morte na literatura, os volumes infindos do padre Bernardes, as edições originais dos livros de Otto Maria Carpeaux, que os li todos. Estranhava os títulos : Origens e Fins, a cinza do purgatório... Tanto quanto os belos que me caiam às mãos : Amor de Perdição, admirável mundo novo, os donos do poder, casa grande e senzala.... Ou o mais encantador da colônia, mais que Cultura e Opulência do Brasil. Lembro do Divertimento admirável para os historiadores curiosos observarem as máquinas do mundo reconhecidas nos sertões da navegação das minas de Cuiabá.
Um dia um jovem professor me viu com A Gloria de Cesar e o Punhal de Brutus, de Alvaro Lins. Alguém ainda lê isso? Não podia responder que só porque o título me atraía. E que um livro vale não pela capa, mas às vezes pelo título. Desculpe professor, peguei ao acaso. Murmurei. Como podem ser belos os de alguns livros fortes: Esta Noite a liberdade, as veias abertas da América Latina, os condenados da terra...
Nos sebos dos anos 1980 um livro despedaçado na Rua Rodrigo Freitas sempre me chamava a atenção : Tratados, Farrapos de Papel. Era uma frase do chanceler alemão Bethmann Hollweg. Hoje eu sei. Não havia ainda para mim os historiadores, só o teatro da coleção abril e seus Pirandello, Albee e Ibsen que um astrólogo Fernando Guimarães me emprestava antes de partir para San Francisco. E o cheiro de terra e sangue nos contos de Verga. E Italo Svevo. Alberto Moravia lido à espera do amor não correspondido. Uma tarde, depois do bandejão, fechei os olhos na última página do diário de Cesare Pavese : “Non scriverò più “. E não mais escreveu. Matou – se o autor de A Lua e as Fogueiras. O combatente antifascista.
Eu lia insaciado entre os estudantes desapressados do Crusp. Veronica me oferecia Lula : a biografia de um operário e Eduardo o Pai Patrão. E eu perambulando pelas bancas de livros usados do Evandro e do Jai, no DCE Livre onde havia a menininha Isadora antes de saltar da vida, a dançarina Raquel, os punks do uspício, os poemas ainda não escritos de Heitor, as esperanças do Mao na Revolução, os olhos da Silvia. Ubi sunt? O professor Davi Arrigucci falava “Bakhtin” enquanto salivava envolto com as próprias ideias. Ali ruminava suas Leituras de Manuel Bandeira. Elias intentava um romance, Eduardo uns versos e todo mundo queria a poesia. Eu lia só os títulos enquanto imaginava Raquel selar as cartas que me enviava com seus lábios adstringentes. E pareciam dizer: vamos viver no nordeste. Vamos viver de brisa.
Numa livraria tantos anos depois eu procurava um título que desejo com todas as minhas vontades : Tous les chevaux du Roi de Michele Bernstein. Ah, que título. Mas meus olhos se espantam entre as lombadas da estante com “A história de um mentiroso “, um Bakhtine Démasqué... Folheei triste, deixei. E o pesquisador Bruno Gomide da USP descobre que Otto Maria Carpeaux plagiou Walter Benjamin... O meu Carpeaux! Na imprensa leio editoriais fascistizantes, notícias verdadeiras (prefiro as falsas) e que o escritor brasileiro mais rico recebe um repórter em sua pequena mansão Suíça. Nela não há um único livro.
Tempos de restauração. Sei que no Sul do país um ex presidente lê num cárcere. E se dessa vez eu fosse viver no nordeste?

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