Livro, de Michel Melot
O que é um Livro?
Para a Encyclopédie de Diderot e D’Alembert, as
formas variadas de apropriação do livro definem seus múltiplos predicados :
livros de entregas, livros de contas, livros de cópias, livros de
correspondências, livros de portos, livros de embarcações, livros de operários,
livros de banco, livros de comércio, livros de comissões, livros de contas
correntes, livros de faturas, livros de números, livros de prazos,
livros-caixas, livros de tarifas, livros de borderôs, livro-jornal,
livro-memorial, livros de extratos, livros de razão e, principalmente, o
“grande livro”, peça matriz do comércio, qualificado como “grande in-folio de muitas
mãos, mais ou menos de papel muito resistente, muito largo e muito grande”.
Um caleidoscópio de
tipos que acenam para o significado laico, senão, coloquial do livro nas
sociedades contemporâneas. Dessacralização do objeto, cujo longo percurso se
apresenta como tema central de Livro, este
belíssimo ensaio de Michel Melot.
Pensemos na própria “lei de Gregory”, relativa a
um aspecto curioso, senão, miraculoso do livro. A dobra das folhas de
pergaminho fazia tocar, invariavelmente, os mesmos lados da pele, donde a
fórmula: “carne contra carne”, “flor contra flor”, esta última designando o
toque da face exterior. O ato de abrir e fechar um livro, sempre tão carregado
de emoção, não perdoa o leitor mais desavisado. Há sempre uma promessa quando
um livro se abre, no limite, a esperança de se encontrar, encerrada entre duas
capas, toda a verdade do mundo.
Assim o livro surge
como elemento a um só tempo criador e devorador. É parte intrínseca da natureza
humana, pois produz comunicação. Todavia, ao projetar a escrita, os autores e
suas ideias, encerra-os, antes, devora-os em seu perímetro, entre suas capas.
Elemento que se confunde com o próprio corpo humano, rouba-lhe a identidade.
Percepção que vale bem um exercício de anatomia do livro, o que nos convida a
lhe reparar o pé, a barriga, a cabeça, o dorso (ou lombo), os cortes, o peso, o
cheiro... O livro mimetiza o corpo e a alma humana, desde a epiderme até atingir,
em cheio, suas partes mais íntimas, como o revela a vasta literatura devotada
ao tema. Para além do texto, as fotografias de Nicolas Taffin insinuam, em
alguns casos exibem, na intimidade do livro, essas partes menos pudicas que a
literatura buscou retratar através de palavras... vale lembrar, inscritas nos
livros.
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Foto de Nicolas Taffin |
Para cada história, ou
imagem, na qual se revela a vocação sensualista do livro, vários séculos de
reprodução e de fixação das mesmas narrativas, senão, dos mesmos grafismos que se
acomodam neste objeto. E deles emergem leitores, senão, leitoras, pois, como
observa o autor, no imaginário dos homens que criaram um padrão para as
leituras proibidas, o universo feminino se projeta e ganha corpo, ancorado, vale
ressaltar, no corpo do livro. Um corpo que sobrevive à própria natureza humana,
que a supera e a transcende. Mas – dentre tantos mistérios insondáveis, some-se
este, ainda, o da contradição intrínseca ao objeto – cujo corpo só existe e tem
sentido como obra humana. Sagrado ou profano, é neste corpo aberto a tantas
formas e usos, que se encerra uma longa história.
Michel Melot, Livro, . Trad. de Marisa Midori Deaecto; Valéria Guimarães. Fotografias de Nicolas Taffin. Cotia: Ateliê Editorial, 2012, 244 p. (Coleção Artes do Livro, 9).
www.atelie.com.br
Michel Melot, Livro, . Trad. de Marisa Midori Deaecto; Valéria Guimarães. Fotografias de Nicolas Taffin. Cotia: Ateliê Editorial, 2012, 244 p. (Coleção Artes do Livro, 9).
www.atelie.com.br
Livro maravilhoso, publicado pela Edusp, em 2012.
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